A coluna do jornalista Merval Pereira de O Globo, intitulada ‘Opinião pública’ (10/6/2005), colocou em discussão a noção de opinião pública, que encontraria na imprensa o canal privilegiado de manifestação ao desempenhar o papel de criticar e tornar transparente os atos dos governos, considerando que numa sociedade democrática a liberdade de opinião é um direito garantido constitucionalmente [veja abaixo remissão para comentário de Venício A. de Lima sobre essa coluna do Globo].
O jornalista sustenta que a imprensa no Brasil se transforma no quarto poder por uma desfunção dos demais poderes institucionais. Acrescenta ainda que pesquisa realizada pelo Ibope mostra como é alta a confiança da população nos jornais, enquanto os políticos ficam com os piores índices. A divulgação dos dados da pesquisa ocorre no momento de uma forte crise política originada das denúncias de corrupção que atingiram o governo Lula e sua base partidária de apoio. As denúncias de corrupção motivaram o colunista e alguns atores políticos a fazer comparações entre o governo Lula e o segundo governo Vargas (1951-1954), alvo da CPI do jornal Última Hora, criado a partir de empréstimos do Banco do Brasil.
De fato, o segundo governo Vargas e o caso Última Hora oferecem importantes elementos para uma análise não apenas do papel da imprensa e do conceito de opinião pública por ela divulgada, como também das características de uma cultura enraizada historicamente no país, que resiste à ampliação da democracia através do não-acatamento às regras políticas e desprezo pelas instituições representativas. No caso Última Hora podemos observar como a linguagem é um campo de conflitos ideológicos no qual uma mesma palavra pode tomar diversos significados, conforme seja utilizada por um ou por outro representante da imprensa. Quando a imprensa faz dela própria um tema prioritário de debate, importantes informações são reveladas, possibilitando ao público compreender com mais clareza seu modo de funcionamento, assim como os vínculos políticos que estabelece e as concepções de sociedade que difunde.
Uma das particularidades do caso Última Hora consiste no fato de que denúncias em torno de um único jornal acabaram por colocar em debate as relações do governo com o conjunto da imprensa. Na medida em que o caso ganhou repercussão com a instalação da CPI pedida pelos deputados da UDN, toda a imprensa passou a ser objeto de investigação. As pressões para influenciar seus rumos quanto ao sentido e alcance das investigações foram acompanhadas de noticiários revelando também a postura de outros jornais, e não só a da Última Hora. Que outros jornais receberam subsídios oficiais? Qual a situação financeira das empresas jornalísticas quanto às dívidas com o Estado? Que jornais estabeleceram contratos de publicidade com o governo? Essas questões indicam que a CPI acabou por constituir-se em fórum de debates sobre o funcionamento das instituições democráticas, entre elas a imprensa.
Concepção elitista
Instalada em março de 1953, a CPI acabaria inocentando o então presidente Vargas das denúncias de que teria intercedido na liberação do empréstimo do Banco do Brasil a fim de criar o jornal Última Hora. O Globo reconheceu em editorial ‘que o único ato pessoal, direto de Vargas em favor do diretor da Última Hora teria sido a demonstração de apreço com que recebeu o aparecimento do jornal, expressa na carta que dirigiu a Samuel Wainer e que foi estampada no primeiro número do vespertino’. Em que pesem suas tradições e práticas autoritárias, Getúlio Vargas era considerado pela Última Hora não apenas o maior líder da história do país e responsável pela mais avançada legislação social, mas o legítimo representante dos anseios nacionais e populares. Na edição vespertina de seu primeiro número, em 12 de junho de 1951, foi publicada uma carta de Vargas em que o presidente congratulava-se pela criação do jornal, atribuindo à imprensa a missão social de ‘esclarecer e orientar a opinião pública, auxiliando oficialmente o governo na sua tarefa cotidiana de bem servir as necessidades e aspirações populares’.
Em pesquisa desenvolvida sobre os discursos dos jornais O Globo, Tribuna da Imprensa e O Jornal adotados durante o segundo governo Vargas, observamos o caráter polissêmico da expressão opinião pública. Os jornais oposicionistas divulgaram concepções de opinião pública que acentuavam os aspectos culturais da sociedade, enfatizavam a dimensão racional do indivíduo e atribuíam às elites um papel central na sua formação. Seja a opinião pública entendida como instância crítica, seja pensada como porta-voz da cultura da nação, enraizada nas tradições, nos sentimentos e nas crenças que dominam as coletividades, os textos desses jornais revelavam um forte conteúdo elitista. As elites, minorias seletas e ilustradas, eram consideradas a fonte da opinião autêntica, tendo, portanto, a tarefa de orientar a opinião inculta das massas. Esses jornais distinguiam uma opinião pública de elite, com poder de influência porque informada e argumentada racionalmente, de uma opinião pública dominada pelas massas. Esta seria destituída de valores culturais, passível de manipulação, podendo converter-se numa tirania sobre as minorias.
É possível supor que a concepção elitista de opinião pública adotada pelos jornais O Globo, Tribuna da Imprensa e O Jornal tenha sido valorizada em virtude do crescimento da participação dos setores populares nas decisões públicas, diante de um governo que justificava a intervenção nos domínios econômico e social como garantia para promoção da justiça social. A reação desses representantes da imprensa ao novo momento experimentado no governo Vargas se manifestou num discurso permeado pela desconfiança com relação aos políticos e à representação política. Além de reclamarem da escassez de homens com qualidades morais e intelectuais para atuar no Legislativo e Executivo, colocavam em dúvida a possibilidade de Vargas, presidente eleito, contribuir para o aperfeiçoamento dos valores e instituições do regime representativo. Ao mesmo tempo em que desvalorizavam e desqualificavam os espaços de manifestação institucional da opinião pública, difundindo a noção de que o governo carecia de legitimidade, os jornais também valorizavam uma visão publicista segundo a qual a imprensa seria o lugar privilegiado de manifestação da opinião pública e estava autorizada a falar em seu nome. Nessa interpretação revelou-se a oposição entre a imprensa, que pretendia monopolizar a expressão da opinião pública, e a representação institucional, não reconhecida como expressão legítima da opinião pública.
Espaço privilegiado
No âmbito do embate entre uma concepção de opinião pública elitista e outra que enfatizava a necessidade de incorporar uma ampla gama de instituições e setores sociais, sendo as massas trabalhadoras decisivas na sua constituição, emergiu a campanha contra o jornal Última Hora. A oposição denunciava que o financiamento concedido pelo Banco do Brasil ao jornal de propriedade de Samuel Wainer se distanciara das condutas legalmente adotadas. Condenava a atitude do governo de usar dinheiro público em favor de seus partidários e argumentava que se criara um jornal cuja linha editorial nascera comprometida em formar uma opinião favorável ao governo Vargas. O caso Última Hora passou a ser definido como um exemplo de corrupção política, a matriz de outros escândalos, de acordo com o espírito udenista de promover uma cruzada pela regeneração dos costumes da República. Desse modo, procurou-se colocar em dúvida a credibilidade da Última Hora a fim de conter sua influência, combater os projetos político-ideológicos difundidos pelo jornal e afetar a imagem daquele que era apontado como o responsável pelo seu surgimento: o presidente Getúlio Vargas. Mais do que uma competição pelo mercado jornalístico, o caso Última Hora refletiu uma luta política pelo domínio das informações divulgadas para um público que sofria mudanças na sua consciência e se expandia cada vez mais em função do crescimento urbano e industrial.
Desde a sua criação, a Última Hora se viu na condição de um jornal que pretendia, sobretudo, dar voz e representar um público popular. Assim, seu foco não estaria voltado somente para aqueles setores privilegiados socialmente que, pela elevada formação cultural e patrimônio econômico, sempre tiveram acesso à imprensa para divulgar opiniões. Embora reconhecesse sua importância, a Última Hora enfatizava que a imprensa era uma das instituições que possibilitavam a manifestação da opinião pública. Era mais um espaço institucional do regime democrático através do qual deveriam fluir os debates públicos sobre as decisões do governo. Em contraposição ao discurso dos representantes da imprensa oposicionista, a Última Hora compreendia a liberdade de imprensa a partir da validade da ação do Estado, ao criar condições para a expressão dos interesses das camadas populares, setores da sociedade tradicionalmente excluídos do debate político.
Nesse quadro em que as forças trabalhistas ampliavam o controle sobre a direção do Estado, acentuavam tendências intervencionistas nos campos econômico e social e mobilizavam politicamente as massas com ideais nacionalistas e reformistas, os setores da imprensa oposicionista, identificados com o ideário liberal, converteram-se aos olhos dos antigetulistas em autênticos representantes da opinião pública e dos tradicionais valores da sociedade brasileira, que colocavam a liberdade do indivíduo e os direitos de propriedade em primeiro plano. O discurso que fez da imprensa privada um espaço privilegiado para a defesa de uma sociedade que ressaltava o papel preponderante das elites na definição das questões públicas também reagiu à permanência da Última Hora no mercado jornalístico: um projeto que via no apoio ao governo trabalhista de Vargas um caminho para diminuir as desigualdades sociais criadas pelo livre mercado capitalista e fortalecer a cultura democrática no país.
A vontade das elites
Durante a campanha contra o jornal Última Hora, os representantes da imprensa oposicionista não apenas questionaram a nacionalidade brasileira de Wainer, que era judeu de origem romena. Alegaram com base na Constituição que um estrangeiro não poderia ser dono de um jornal no Brasil. Pediram o fechamento da Última Hora, acusada de emitir mensagens favoráveis à ideologia comunista propagada pela União Soviética. Assim, tentaram excluir este periódico do debate político, negando a sua proposição central: a conquista dos direitos de cidadania das massas populares numa moderna democracia representativa pressupõe sua participação e presença nos centros decisórios, mas também resulta da ação de um Estado responsável, atuante e comprometido com um projeto de desenvolvimento nacional.
No momento atual, a intervenção do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos no debate (entrevista à Carta Capital, 15/6/2005) jogou luz sobre a atual crise política, ao atribuir à imprensa o devido peso na tentativa de desestabilização do governo Lula. Diz Wanderley que a imprensa é a maior corporação existente hoje no país, com um poder infernal. Esse imenso poder social constituiria um dos fatores que explicam a força da oposição, voltada para criar um clima de insegurança que inviabilize a reeleição do presidente Lula. Enquanto o governo Fernando Henrique Cardoso conseguiu evitar que a suposta compra de votos para a reeleição do ex-presidente se desdobrassem em escândalo político, o governo Lula tem sido alvo constante de denúncias de corrupção na grande imprensa, sempre acompanhadas de pesquisas na expectativa de um possível desgaste da imagem do presidente. Diferentemente do período FHC, quando não havia uma oposição forte e a imprensa não se colocava contra o governo, Lula enfrenta acirrada oposição, que tem apoio da grande imprensa.
Como ator político, a grande imprensa vem representando a vontade das elites liberais conservadoras que vêem com desconfiança um presidente de origem popular articulado com a esquerda, apesar da ampla coalizão partidária para garantir as decisões do governo no Congresso e da implementação de um programa econômico considerado continuísta pelos próprios setores do PT, porque de conteúdo neoliberal. Ao mesmo tempo em que constroem a imagem do PT e do governo Lula associada à corrupção, diversos jornais com influência na opinião pública têm divulgado críticas de colunistas com nítido caráter ideológico, com base na idéia de que crenças, projetos e ações do governo e do PT se alinham às práticas da velha esquerda autoritária, que entenderia o processo político pelo conceito de hegemonia. Além de estigmatizarem o governo Lula, as argumentações sugerem que as decisões dos atuais dirigentes do Estado brasileiro derivam de concepções de mundo atrasadas, derrotadas historicamente.
Convergência de interesses
As estratégias da oposição e dos representantes da imprensa liberal nos governos Vargas e Goulart se voltaram para minar a confiança que as duas principais autoridades do Estado obtiveram da opinião pública por meio de eleições democráticas. Vargas era identificado com a criação do Estado Novo e, portanto, sem compromisso com o aperfeiçoamento das instituições representativas. Goulart não era digno de confiança porque estaria alinhado às forças de esquerda. A oposição conservadora receava que uma alteração repentina do jogo pudesse ser promovida pelos presidentes, seja para resgatar o autoritarismo, seja para implantar o comunismo. Embora se mantivessem dentro das regras constitucionais, os presidentes foram derrubados por golpes.
Se fizermos uma comparação com o governo Goulart, veremos que naquele período as forças em luta pela direção do Estado estavam em equilíbrio. As elites liberais conservadoras contavam com a maioria da imprensa e com o apoio de setores do empresariado, da classe média e dos militares. Em contrapartida, o campo da esquerda constituído pelos trabalhistas e comunistas também exercia influência na opinião pública, mobilizava politicamente as organizações sindicais dos trabalhadores do campo e da cidade e contava com a Última Hora.
Não há como negar as semelhanças entre o momento atual do governo Lula e as situações históricas de 1954 e 1964, nas quais os representantes da imprensa liberal conservadora desempenharam o papel de atores políticos, procurando desestabilizar governos de caráter popular. Esses casos indicam a existência de uma convergência de interesses entre oposições golpistas e representantes da imprensa, partilhando escolhas políticas e viabilizando concepções de sociedade identificadas com a livre ação do mercado, de modo que os grupos com poder econômico, social e cultural possam continuar a exercer o controle sobre as instituições do país.
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Professor da UFF-Nova Iguaçu (RJ), doutor em História Social pela USP