Os terremotos acontecem aos montes, todos os dias, desde que o mundo é mundo. E provavelmente continuarão acontecendo até perto do fim dos tempos.
Depois dos terremotos no Haiti e no Chile, os sismos entraram na vida das pessoas embalados nos noticiários – como antigamente o peixe embrulhado no jornal. E com eles, as supostas provas para as mais fantásticas histórias sobre o ambiente do planeta. Estamos na iminência do desastre final? Quem sabe? Ninguém.
Não que os seres humanos tenham tratado bem a Terra desde quando começaram a crescer e a se multiplicar. É fato que aqui se tem usado e abusado dos recursos naturais como se fossem infinitos. E a própria voracidade orgânica e cultural dos homens contribui vigorosamente para sujar o solo, as águas e o ar. Mas juntar a incúria e a fantasia à ignorância é no mínimo uma irresponsabilidade.
Os terremotos acontecem aos montes, todos os dias, desde que o mundo é mundo, como o prezado leitor poderá verificar no mapa do Google Earth, atualizado a cada cinco minutos, com base nas informações do United States Geological Survey. E provavelmente continuarão acontecendo até perto do fim dos tempos, se o sistema solar se mantiver equilibrado até lá.
Horror e balbúrdia
Nosso planeta é feito de uma ‘casca’ mais ou menos sólida que envolve um ‘núcleo’ líquido em altíssimas temperaturas e sob pressão. E como a ‘bola’ gira de acordo com as regras planetárias, nada mais justo que os gases ou o material incandescente mais próximo da crosta seja expelido pelas válvulas (vulcões), pelas frestas dos oceanos e dos continentes (geysers) ou simplesmente colabore com os deslocamentos da casca ou para a agitação desmesurada dos mares.
A diferença é que esses humores intestinos podem ser hoje registrados com certa precisão, embora não possam ser previstos como gostariam os cientistas, os políticos e o resto da galera terráquea. Além disso, a mídia passou a tratar desses registros na ligeireza com que discorre sobre outras medições, como as óbvias altas temperaturas nos verões ou as manifestas baixas marcas dos termômetros no inverno; o peso e a quantidade de dinheiro que cabe em cuecas, as estatísticas de gripes ou a extensão de desmatamentos, sempre mais ou menos equivalentes a algum grande múltiplo de um hipotético campo de futebol.
A outra diferença, mais trágica, é que os terremotos provocam hoje mais horror e balbúrdia porque as cidades cresceram. Pela primeira vez na história da humanidade, o planeta terá neste século mais da metade da sua população em área urbana. E pouco preparada para enfrentar rachaduras do chão, como se viu outro dia, já neste século, no Peru, em 2007, e na China, em 2008.
Crimes e espetáculos
O julgamento do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, respectivamente pai e madrasta da menina Isabella, que respondem pelo homicídio ocorrido em março de 2008, quando a menina caiu da janela do 6º andar do edifício London, na capital paulista, transformou-se no previsto espetáculo midiático onde não faltam maquetes de prédios, inúmeros profissionais de peso, dezenas de coadjuvantes e audiência certa para a internet, os jornais, o rádio e a TV.
Independentemente do julgamento, o crime é horrível, como, lá fora, o do pai que manteve a filha encarcerada por anos e com ela procriou; dos massacres promovidos por atiradores endoidecidos, nos Estados Unidos, e por profissionais de guerra, nos conflitos que se desenrolam no mundo; ou aqui dentro, da emboscada e morte da missionária na Amazônia ou das torturas e execuções nas favelas de São Paulo e Rio de Janeiro.
É tão horrível quanto os que pingam sangue e tragédia diariamente de pequenos espaços dos noticiários destinados – como nos cemitérios – aos não abastados: pai que estupra a filha, filho que espanca a mãe, mulher que degola o marido ou motorista bêbado que atropela crianças na frente da escola.
No caso de Isabella, do crime ao julgamento iniciado nesta semana, investigações, inquéritos e justiça andaram à velocidade de Fórmula 1. E mesmo que após o veredicto possam ser percorridas outras instâncias da Justiça para contestar a decisão dos jurados, se continuará a passos velozes para dar satisfação à audiência.
Tempo de estatísticas
Nas outras infrações – de qualquer porte – sem luzes, câmeras, páginas de jornais, de revistas e microfones de rádio, Polícia e Justiça infelizmente tardam, e muitas vezes falham. E mesmo se concordamos haver ainda um longo caminho de consolidação democrática das instituições e da cidadania, falhar e tardar são ervas daninhas assemelhadas à simples exploração midiática inconsequente de crimes.
Das infrações à Lei mais brandas – por assim dizer, sem sangue ou horror –, que a Justiça trata a passos de lesma, resguardada dos holofotes da mídia, e a mídia trata com rigor olímpico, contam-se, por exemplo, os julgamentos e execuções de precatórios familiares; os processos trabalhistas coletivos; demandas contra o Estado ou sobre fraudes de várias naturezas. Boa parte deles esparramados por incontáveis páginas de processos ao longo de dezenas de anos e, às vezes, de gerações.
Mas como agora – neste tempo de estatísticas – passaram-se a contar os feitos e compará-los aos do mês, do ano e do século anteriores, assim sem substância ou circunstância. E a ligeireza de repassá-los ao público sem derrubar biombos contrasta com o espetáculo do justiçamento servido à plebe ignara.
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PS. Trata-se aqui por mídia o conjunto de emissores que provêem entretenimento de um modo geral. Entenda-se que imprensa deva ser outro conjunto cujo objetivo é prover informação.
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Jornalista, editor sênior de Economia Interativa