A noite de 29 de março de 2008 será inesquecível para milhões de brasileiros. Uma menina de 5 anos é estrangulada e atirada do sexto andar de um edifício de classe média em São Paulo através de um buraco cortado na rede de proteção da janela. Os acusados pelo bárbaro crime são seu pai, Alexandre Nardoni, e sua madrasta, Anna Carolina Jatobá. Os indícios apontam que não havia outra pessoa no apartamento no momento da queda. Chocada, a sociedade cobra uma punição e o assunto ganha grande destaque na mídia.
Cada passo da investigação é divulgado detalhadamente. Envolvida pela carga dramática do assunto, a imprensa precisa escapar de uma cobertura que condene antecipadamente os réus.
Dois anos depois, começa o julgamento. Cumprindo a Constituição federal, forma-se um tribunal do júri. Sete cidadãos e cidadãs decidirão se os réus são culpados ou inocentes. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (30/3) pela TV Brasil discutiu a influência dos meios de comunicação na formação da opinião de um júri popular em casos de grande repercussão, como o da menina Isabella.
Show empolgante
Para debater este tema, Alberto Dines recebeu dois convidados no estúdio do Rio de Janeiro: Antonio Cesar Rocha Antunes de Siqueira, presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj) e desembargador da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio, e José Muiños Piñeiro Filho, desembargador do Tribunal de Justiça Rio de Janeiro. Ex-procurador geral de Justiça do Rio de Janeiro, atuou como promotor nos casos Daniela Perez e Guilherme de Pádua; chacina da Candelária e chacina de Vigário Geral. Em São Paulo, participou Luis Fernando Camargo de Barros Vidal, presidente da Associação Juízes para a Democracia e da Comissão de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
Antes do debate ao vivo, na coluna ‘A mídia na semana’, Dines homenageou o jornalista Armando Nogueira, que faleceu na manhã de segunda-feira (29/3), no Rio. Dines relembrou que Armando Nogueira detestava o lugar-comum. ‘O que ele escrevia para o dia seguinte tornou-se literatura definitiva – graças ao jornal impresso onde nada se deleta, tudo fica’, disse (ver aqui).
Ainda antes do debate no estúdio, em editorial, Dines comentou que para o grande público o tribunal do júri encarna a administração da Justiça. ‘Mesmo sem a presença de gravadores e câmeras durante as sessões, os bastidores deste show são empolgantes’, afirmou [ver íntegra abaixo].
Linchamento antes da condenação
A reportagem produzida pelo programa mostrou diversas opiniões. O advogado criminalista Clóvis Sahione avalia que ‘não é um julgamento, é um linchamento’. Sem apontar se o casal é inocente ou culpado pela morte da menina, Sahione ponderou que o júri já entrou no tribunal certo do que iria fazer: condenar. ‘Esse julgamento, sem dúvida alguma, é a crônica de uma condenação anunciada. Aquele casal sai da penitenciária levado pelos camburões, vai para o tribunal. Quando termina o dia, volta para a penitenciária. Mas eles já sabendo que, no final de tudo, serão condenados’, comentou.
Para o jornalista Florestan Fernandes Jr., gerente-executivo de Jornalismo da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) em São Paulo, cobrir um caso como este requer grande responsabilidade por parte do profissional. ‘O jornalista não está ali para prejulgar o que ocorreu. O que a gente viu na maioria da grande imprensa foi uma cobertura parcial’, avaliou. O jornalista Renato Lombardi, da Rede Record, destacou que os jovens repórteres escalados para coberturas como esta devem estudar o caso e se preparar. Precisam minimizar as chances de serem envolvidos pela comoção social. ‘O jornalista tem que ser frio’, disse. Na opinião de Lombardi, é obrigação da imprensa ter equilíbrio e apenas retratar os fatos.
A luta entre razão e emoção para os profissionais e imprensa é permanente, na avaliação do jornalista e escritor Percival de Souza. Em certos momentos é difícil separar essas condições. ‘Se você está no local de um crime, se vê as provas, as fotografias, o levantamento pericial, se contempla, como eu, o corpo de Isabella, isso mexe com você. Quer você queira, quer você não queira. Isso escapa de seu domínio.’ Avô de uma menina de 5 anos, Percival admite que na época do crime era difícil ‘separar a minha neta de Isabella’. Mas o jornalista enfatizou que os repórteres devem esforçar-se para que a emoção não domine a cobertura.
Informação contextualizada
Tatiana Farah, repórter escalada pelo jornal O Globo para participar da cobertura, relembrou que para não ‘escorregar’ no sensacionalismo é preciso adotar algumas precauções, como procurar contextualizar a informação. ‘Por mais que a história da Isabella nos comova, infelizmente não é a única’, disse. A jornalista citou como exemplo uma reportagem produzida na época da morte da menina que revelava dados sobre assassinatos de crianças no Brasil, a maioria dentro das próprias casas. As estatísticas mostravam que a cada dez horas uma criança era assassinada no Brasil.
No debate ao vivo, Dines relembrou um caso de grande repercussão ocorrido há cem anos: a morte do jornalista e escritor Euclides da Cunha pelo amante de sua esposa, o cadete Dilermando de Assis. Apesar do clamor da opinião pública e da imprensa exigirem a condenação do réu, o Tribunal do Júri aceitou a tese de legítima defesa e absolveu o cadete.
Para Antônio César Siqueira, a relação entre imprensa e Poder Judiciário precisa ser estudada mais profundamente. No caso específico do casal Nardoni, o que se viu foi ‘uma exploração midiática de extrema gravidade e que levanta esse questionamento de como a opinião pública pode ser manipulada pela mídia no sentido de criar uma expectativa de um determinado resultado de um julgamento’.
Na opinião do magistrado, é preciso que a mídia entenda que se essa pressão não é determinante do resultado do julgamento correto, ela pode ser legitimadora de um julgamento incorreto. ‘Talvez seja mais perigosa no sentido negativo de criar na opinião pública a expectativa de um julgamento equivocado por parte do Poder Judiciário’, alertou. Siqueira disse que há exemplos de situações no Brasil em que o Tribunal do Júri se configura como mais influenciado pelo clamor da opinião pública do que um magistrado togado, mais bem preparado tecnicamente para lidar com este tipo de pressão.
Toga sob pressão
Luis Fernando Vidal destacou que nesta discussão é preciso tentar desconstruir idéias preconcebidas, como a da maior suscetibilidade do júri. O juiz togado também está sujeito a pressões, mas ‘sabe lidar de uma maneira diferente no plano da linguagem, da justificação das suas decisões’. É preciso tratar a opinião pública de forma mais respeitosa porque nem sempre ela é passível de manipulação por parte da mídia. ‘Há um processo onde a mídia influencia e é influenciada, ela pauta e é pautada porque ela está adaptada perfeitamente a essas estruturas da opinião pública, à estrutura mental da sociedade de forma geral’, argumentou.
Apesar de fazer ressalvas à atuação da mídia no caso Nardoni, José Muiños Piñeiro avalia que a cobertura da imprensa trouxe benefícios à sociedade. ‘O Brasil inteiro ficou sabendo que em um bairro de classe média de São Paulo um pai é acusado de matar uma filha. E se não fosse a imprensa, talvez este fato, como outros semelhantes, estivesse escondido’, afirmou. Quando fatos como esses são amplificados pela imprensa, os valores da sociedade passam a ser questionados.
Prejulgamento sem volta
Antônio César Siqueira ponderou que tanto o júri quanto o juiz são passíveis de erro e há recursos para essas duas situações. O magistrado explicou que os jurados têm uma liberdade de julgamento que o juiz não tem. ‘Se a prova do processo é duvidosa e o Conselho de Sentença resolve condenar ou absolver alguém, o tribunal, em tese, não pode interferir’, disse. O magistrado contou que participou de um caso no qual um traficante foi condenado por um homicídio no qual não havia provas de sua participação. Foi condenado pela sua ficha penal e pelo mal que fazia para a comunidade onde vivia. Siqueira ponderou ainda que o prejulgamento feito pela imprensa pode interferir ‘gravemente na vida das pessoas’.
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A exploração do mito
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 539, exibido em 30/3/2010
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Na galeria de mitos e símbolos românticos criados pelo cinema americano está o advogado bronco, mas capaz de convencer o corpo de jurados de que o réu prestes a ser linchado é inocente. Alguns clássicos de Hollywood relatam emocionantes julgamentos.
Para o grande público, o tribunal do júri encarna a administração da justiça. É o grande espetáculo forense. O trabalho de formiguinha da promotoria ou da defesa, a preparação do processo e a elaboração da sentença de um juiz qualificado não têm a dramaticidade de um julgamento diante do júri.
O cinema criou o mito e a mídia adora explorá-lo. Mesmo sem a presença de gravadores e câmeras durante as sessões, os bastidores deste show são empolgantes. Na semana passada, de segunda a sexta, o Brasil parou para acompanhar, discutir e julgar o julgamento de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, acusados de matar a filha e enteada Isabella, de 5 anos.
Os acusados foram condenados e o caso talvez volte a ser julgado. Mas além do horror do episódio em si e da repulsa ao circo montado pela mídia popular, o caso Nardoni iniciou um salutar debate sobre a instituição do júri popular. A Folha de S.Paulo ofereceu uma excelente contribuição convocando, ainda durante o julgamento, dois magistrados para expor as virtudes e defeitos do júri popular.
Este não é nosso maior problema na esfera do Judiciário, há outros mais prementes, mas numa sociedade que se deixa fascinar com tanta facilidade pelo melodrama, um debate conceitual sobre o tribunal do júri ajuda a pensar. E, quando a cidadania pensa, produzem-se grandes mudanças.
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Jornalista