Dois textos nos jornais de hoje merecem ser lidos e pensados com menos pressa do que de costume – porque, ou muito me engano, ou as importantes coisas de que tratam não são o que parecem.
O primeiro é a reportagem do Estado intitulada bombasticamente “Política social privilegia idosos e faz crianças mais miseráveis. O segundo é a coluna Panorama Econômico, assinada por Flávia Oliveira, que está cobrindo as férias da titular Miriam Leitão. A peça de resistência da coluna se chama “Que Fenômeno” (assim mesmo, com efe maiúsculo).
A matéria do Estado reproduz as idéias do economista Marcelo Neri em relação aos supostos efeitos das políticas sociais sobre a renda per capita familiar média, conforme as faixas etárias dos seus membros.
Neri, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getúlio Vargas, no Rio, trabalhou com os dados dos Censos de 1991 e de 2000 e os da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), de 2003, para chegar a um conclusão aparentemente perturbadora — que o título da matéria exacerba.
Em poucas – e insuficientes – palavras, a contar de 1991, a renda média familiar per capita dos maiores de 60 anos (R$ 421,98, em 2003) cresceu quase seis vezes mais do que a renda familiar per capita dos menores de 10 anos (R$ 169,80, no mesmo ano, em valores constantes).
Isso porque, segundo Neri, os velhos capturam uma parte proporcionalmente maior dos recursos públicos do que as crianças, “que não votam”. Os recursos de que ele fala vêm da Previdência Rural e do Benefício de Prestação Continuada (BPC), de cujos beneficiários não se exige contribuição prévia (como no casos dos benefícios do INSS).
Desde 1992, a Previdência Rural paga 1 salário mínimo por mês a 7,2 milhões de aposentados. Desde 1996, o BPC paga 1 salário mínimo a 2,7 milhões de maiores de 65 anos, em famílias cuja renda per capita não chega a 1/4 do mínimo.
Somados, os dois programas representam um desembolso superior a R$ 33 bilhões por ano.
Diz a reportagem que a “opção preferencial pelos idosos (que data da Constituição de 1998), em detrimento das crianças” vem sendo “criticada por diversos especialistas”.
O texto não os identifica, mas a afirmação é verdadeira: os economistas que o colunista Luís Nassif, da Folha, apelidou, brilhantemente, de “cabeças de planilha”, como seria o caso de Marcelo Neri, usam o mesmo argumento para chegar onde a patota neoliberal inteira quer: acabar com os programas assistenciais para os idosos.
A reportagem não se deu o trabalho de ouvir o proverbial “outro lado”: os pesquisadores que defendem esses programas. Não apenas como um imperativo ético – as sociedades que abandonam os seus velhos são sociedades indecentes –, mas por seus benefícios em cadeia no âmbito familiar.
O darwinismo social dos economistas à la Marcelo Neri parece presumir que, em regra, os velhos vivem sozinhos — ou, se vivem em famílias, gastam exclusivamente consigo próprios os caraminguás recebidos do Estado.
Agora, salvo prova em contrário, a pirâmide familiar tem os mais velhos na ponta e os mais moços na base: a família brasileira típica tende a ter mais crianças e adolescentes do que idosos e anciãos.
Por isso, quanto maior a proporção de crianças, menor será a renda familiar. Aliás, para um leigo soa muito esquisito o conceito de “renda per capita familiar média por faixa etária”, quando aplicado a menores de 14 anos, proibidos pela Constituição de trabalhar (logo, de ter renda própria lícita), salvo como aprendizes, a partir dos 12.
Um assunto delicado e complexo como esse não poderia, em suma, ser tratado a partir de um único ponto de vista, em relação ao qual a reportagem se limita a servir de eco.
Guardadas as proporções, o mesmo se aplica à coluna do Globo mencionada no início deste artigo.
A autora diz que o jogador Ronaldo (daí o sarcástico “Que Fenômeno” do título), fez “a frase da semana” que, “num só lance, decepcionou parte de seus fãs e, no mínimo, constrangeu as Nações Unidas, que o exibe como embaixador mundo afora e, neste 2006, escolheu o racismo como tema de seu Relatório do Desenvolvimento Humano no Brasil.
A frase foi ele destacar, numa entrevista, a sua brancura. “Eu, que sou branco…”
A colunista, embora desde logo dê a Ronaldo o direito de se considerar branco, pardo ou preto, o critica pela escolha, considerando que sua mãe é mestiça e o seu pai, negro autodeclarado.
Ela pergunta: “Se no Brasil, como tantos insistem em afirmar, não há racismo; se as raças não existem do ponto de vista genético, qual o problema de se declarar negro ou mestiço?”
Se a sua paleta de entrevistados fosse mais heterogênea, quem sabe um deles inverteria a pergunta: qual o problema de se declarar branco?
A meu ver, nenhum. O mero fato de ele ter escolha já indica que é no mínimo um erro conceitual importar dos Estados Unidos a sua contracultura racial, que faz sentido por serem a discriminação disfarçada e o preconceito muitas vezes escancarado parte da vida nacional.
Agora, é minha vez de dizer desde logo que não acho que a sociedade brasileira tenha superado “tamanha ignorância”, como Ronaldo se referiu ao fenômeno do racismo antinegro.
Mas discordo de frente da colunista quando ela diz que “a escolha de Ronaldo desmascara o mito da democracia racial brasileira”.
Ah, as palavras. Mito, no seu sentido mais profundo, não quer dizer mentira, falácia, embromação. Para antropólogos como Lévi-Strauss, é a representação de uma realidade, conforme as percepções que dela têm os que a representam de uma forma ou de outra.
Não é uma distinção pedante. No caso, indica que Ronaldo Luís Nazário de Lima compartilha da representação da sociedade brasileira como uma democracia racial, apesar dos sofrimentos que a tal da “tamanha ignorância” inflige a “todos os negros”.
É simples assim: Ronaldo não nega que o racismo exista, mas nem por isso acha o Brasil racista.
Ah, mas é, segundo um dos entrevistados da coluna, o antropólogo da USP Kabengele Munanga, congolês de nascimento. Para ele, negros que se dizem brancos “incorporaram o conceito de superioridade branca”.
O conceito de ódio ou desprezo por si mesmo, em razão das origens étnicas, geográficas e religiosas, é velho conhecido dos estudiosos do comportamento humano. E, qualquer que seja a sua base real, é usada para desqualificar aqueles que pensam ou se enxergam diferentemente do que “deveriam”.
Para um judeu de direita, o fato de outro judeu acusar Israel daquilo de que os seus governos vem sendo acusados em relação ao problema da Palestina, principalmente desde a ascensão de Sharon, só tem uma explicação: ele é um judeu que se odeia (self-hating Jew, acusam os sharonistas americanos).
A propósito, existem brasileiros anti-semitas. Mas não existe anti-semitismo no Brasil.
Pois bem. Outro entrevistado, o escritor e sambista Nei Lopes, que incluiu o verbete Ronaldo na sua “Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana”, se diz surpreso com o fato de o Fenômeno, “apesar de estar em contato com a família, não se espelhar no pai negro”.
Supreendente é a idéia de que, numa sociedade livre, a auto-identificação deva continuar obedecendo aos arcaicos padrões patriarcais.
Sobra a impressão de que, não obstante o reconhecimento do direito de cada qual se declarar preto, pardo, branco ou o que queira, acusa-se Ronaldo de trair os seus — e presumivelmente a causa da ascensão social dos negros brasileiros — ao escolher a identidade errada, a cor errada.
Às vezes separar o racismo do racismo às avessas parece mais difícil do que partir ao meio um fio de cabelo.