Quem de nós já não ouviu o reparo: “Com todo esse horror acontecendo por aí, você vai criar caso só por isso?”
Pois é. Com todo esse horror acontecendo por aí – incluída a previsível mortandade nas estradas no último feriado – quem é o editor que vai criar caso para que o órgão de mídia em que trabalha dê mais espaço, com frequência, para os “pequenos assassinatos” do cotidiano?
Penso na infinidade de delitos cometidos contra o próximo, de caso pensado ou por dar de ombros, pelos infelizmente muitos brasileiros que, não vivendo do crime, contribuem com a sua delinquência anti-social para piorar o inferno do dia-a-dia.
O cidadão que sonega impostos delinque contra a sociedade, mas de forma indireta. Reduz a possibilidade de o Estado – possibilidade, escrevi – de prestar mais e melhores serviços ao conjunto dos contribuintes
O motorista que quase – para ficar no quase – atropela o pedestre que ousou cruzar a rua, na faixa, quando sinal se abriu para ambos, comete um delito que fere mais, porque concreto e imediato, do que o do sonegador.
O descumprimento das leis que existem para dar direitos iguais aos diversos espécimes que coabitam na selva urbana só muito raramente rende notícia.
O pouco-caso da mídia com a incivilidade brasileira contribui para aumentar a tolerância das pessoas diante do que devia indigná-las. A tolerância com o que alguns, cinicamente, chamam de “pecadilhos”, não resulta de alguma propensão para pegar leve. Resulta da sensação difusa de impotência em face dos nossos podres.
O que se espera da imprensa não é que incursione, uma vez na vida, outra na morte, pelo vasto terrritório das atitudes que em países mais decentes não passariam em branca núvem. Reportagem no Estado de hoje, por exemplo, mostra que em São Paulo os valets de bares, restaurantes e congêneres deixam os carros da clientela em fila dupla, ou sobre faixas para pedestres e em outros locais onde é proibido estacionar, em vez de levá-los ao estacionamento mais próximo, como determina a lei.
Quem acha que isso é coisinha à toa merece viver como aqui se vive.
Mas uma denúncia só não faz verão. Comportamentos claramente inaceitáveis – embora a imensa distância das barbaridades que ensanguentam o espaço nos cadernos metropolitanos dos diários – merecem destaque compatível com a sua incidência e com a carga de desrespeito aos direitos do cidadão que trazem em si.
Noticiar para alertar, educar e, ao fim e ao cabo, reprimir, é também papel da imprensa. Jornal que se puser a fazer isso costumeiramente decerto receberá, com o passar do tempo, enxurradas de cartas de leitores contando, eles também, as agruras que os prepotentes lhes causam.
Ponha-se passar do tempo nisso e quem sabe, apenas quem sabe, a mídia poderá dar partida ao círculo virtuoso que tanta falta faz à maioria que silencia por achar que, “com todo esse horror acontecendo por aí”, é perda de tempo reclamar do que acaba parecendo tão pouco.
Lembram-se da “tolerância zero” que diminuiu a delinquência em Nova York? Por que não, a começar da mídia, tolerância zero com a incivilidade?