Se toda vez que a imprensa fizesse uma matéria de denúncia isso resultasse em uma CPI, estaríamos diante de mais um escândalo. Só que este não envolve políticos. Diz respeito a uma entidade muito mais poderosa do que a Câmara, o Senado ou a Presidência da República. O escândalo em questão, e que passou em branco no resto da imprensa, é a entrevista da revista Época (20/6/2005) sob o título de ‘O pecado do silêncio’, que tem como tema a toda-poderosa Igreja Católica.
Na entrevista, a socióloga da religião Regina Soares Jurkewicz fala de sua pesquisa, resultado de dois anos de trabalho, sobre as estratégias usadas pela cúpula da Igreja para silenciar vítimas: as mulheres que sofrem abusos sexuais cometidos por sacerdotes.
Questionada sobre sua escolha (os abusos contra mulheres em vez da pedofilia), a socióloga explica à revista:
‘É muito mais fácil, no senso comum, aceitar a criança como vítima. Mas quando se fala que uma mulher sofreu abuso ou foi estuprada, a primeira idéia é de que ela seduziu o agressor. Quando as mulheres denunciam, acredita-se menos nelas, pior se o agressor for um padre, um homem envolto em aura de santidade. De vítima, ela vira culpada’.
Além de denunciar o machismo que, nesse caso, não é pecado apenas da Igreja, a socióloga fala da discriminação social, ao lembrar que nos 21 casos pesquisados as vítimas tinham um ponto em comum:
‘Quase todas são mulheres e adolescentes pobres. Sempre próximas aos agressores, ou porque eram membros da comunidade ou porque trabalhavam na paróquia. Nesse sentido, é uma escolha pela facilidade. As mulheres pobres são mais vulneráveis porque precisam da cesta básica, recebem o apoio da paróquia para arrumar a casa. Que sacerdote vai mexer com uma mulher ou uma adolescente que tenham um padrão social melhor e quem as defenda?’
Falta de interesse
O interessante é perceber o contraste entre a matéria da Época com a reportagem do jornal O Estado de S. Paulo (25/6/05) sobre a visita do cardeal Raffaele Martino, presidente do Conselho de Justiça e Paz, durante o lançamento do Compêndio da Doutrina Social da Igreja.
Na revista ficamos conhecendo a verdadeira Igreja atuando nas paróquias pobres do Brasil, onde é o ponto de encontro e referência da população mais pobre. No jornal entramos em contato com a Igreja oficial, com seus dogmas imutáveis, onde os padres são pessoas acima de qualquer suspeita e os pecadores são os fiéis – dos divorciados, que não podem receber o sacramento, aos gays que querem casar.
Essa Igreja oficial, segundo o cardeal Martino, ‘tem o dever de denunciar as injustiças, sem medo das conseqüências’. Pena que as denúncias feitas pela socióloga não foram tema de debate com o prelado católico. Seria interessante saber qual a posição do Vaticano sobre o comportamento de seus representantes quando são eles os pecadores.
Os padres pecadores, segundo a socióloga Regina Soares Jurkewicz, são muito mais protegidos do que os acusados em CPIs no Congresso. Se a mídia consegue vigiar e até influir nos resultados de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que tem suas sessões – ou pelo menos a maioria delas – transmitidas ao vivo para toda a população, quando se trata de crimes cometidos por sacerdotes a história é bem diferente. Diz a socióloga:
‘O padre que abusa tem uma proteção institucional que os outros homens não têm. Homens não-padres estão mais sujeitos às leis civis. O padre também está, porque antes de ser padre é um cidadão. Mas o que acontece na prática é que a Igreja brasileira fez a escolha do silêncio. O bispo ou superior se preocupam em conversar com ele, mas é uma conversa no sentido de compreendê-lo, de saber se está disposto a pedir perdão a Deus e se reconciliar. Dificilmente ele será afastado do sacerdócio. Todos os esforços da cúpula são para que o caso não saia das paredes da instituição.’
O que a socióloga não disse – talvez em agradecimento pelo espaço recebido para falar de seu trabalho – é que a escolha pelo silêncio não é apenas da Igreja. Quando se trata de discutir crimes contra mulheres, especialmente as mais pobres, a escolha pelo silêncio parece contaminar também a própria mídia. Senão, como explicar que as denúncias feitas por ela, baseadas em dois anos de pesquisa, não tenham repercutido em outros veículos jornalísticos?
Terá sido por que falta interesse num assunto que envolve mulheres – especialmente as mulheres pobres? Terá sido medo – ou conivência? Ou a imprensa está perdendo de vez a sensibilidade?
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Jornalista