É a tarde do lançamento do livroOs estudantes da pantera. Chegam os personagens reais do livro e o autor, Nando Simeone, que também é um dos protagonistas. Eles sorriem muito e se abraçam, conforme vão se reconhecendo. Uns já estão acima do peso. Outros, com os cabelos embranquecidos. Nenhum tem menos de quarenta. Falam do tempo que passou, de muletas, divórcios, da vida. E todos concordam, vendo os vídeos da época, que ninguém ficava realmente bem com aqueles cabelosmullets, praga dos anos 90. Vinte anos são passados desde a última grande, ampla e duradoura mobilização estudantil na Itália. E estas pessoas todas estiveram lá.
A revolução não vai passar na televisão, como diz Gil Scott-Heron. Em 1990, a Itália já tinha assentadas as condições para que nada muito relevante fosse transmitido pelos meios. A comunicação não estava somente sendo privatizada, mas já virava monopólio nas mãos de um ‘megaempreendedor’ chamado Silvio Berlusconi.
No contexto político, vivia-se a ideologia da sociedade pacificada, na qual os conflitos são assimilados. Com a queda do regime do Leste, o PCI, maior partido comunista fora da URSS, resolve ‘sair pela direita’, renegando até mesmo a foice e o martelo. O movimento estudantil, que estava renascendo, contesta o congresso do PCI, por considerar que sua política para a educação superior era muito comprometida com a do ministro Ruperti para a Pesquisa Científica. Ruperti é um socialista que tem um projeto de ‘contrareforma’ para o ensino superior italiano, com menos verbas para a pesquisa, com sistema meritocrático e a quase privatização do sistema de ensino.
Tecnologia para desestabilizar oestablishment
A situação ia também da precariedade dos profissionais à conservação dos prédios. Os estudantes declararam estado de mobilização. A partir de Palermo, capital da Sicília, eles começam a ocupar as universidades por tempo indeterminado, já em 13 de dezembro de 1989. Em Roma, Nando Simeone e seus colegas ocuparam a secretaria e a reitoria da faculdade de Psicologia em 18 de dezembro de 1989. Mas foi em 17 de janeiro de 90 que uma assembleia declarou o início oficial do movimento. Pouco a pouco, a onda se estendeu por toda a Itália.
Conforme as universidades eram ocupadas, os estudantes organizavam oficinas para discutir da reforma Ruperti ao direito ao ensino, e montavam seu próprio centro de imprensa para ‘administrar a difícil relação com a mídia de massa’, conforme relata Nando Simeone emOs estudantes da pantera.
E também escreve: ‘O fax será a grande novidade comunicativa desse movimento. Graças a ele, instalado nas secretarias das faculdades, os alunos ocupados trocavam mensagens, documentos e comunicados para a imprensa.’ Andrea Mazzucchi diz que esse uso do fax foi o primeirosocial network do mundo, usado pouco antes para difundir os acontecimentos na China, com os conflitos na Praça da Paz Celestial. Mazzucchi era aluno do curso de Física e foi um dos criadores do Okkupanet: ‘A gente tinha a rede de VAX baseada sobre o DECnet, que permitia coligar os VAX e os microVAX do mundo todo’. Difícil? Vai continuar difícil, mas é genial: ‘O Okkupanet unia todas as faculdades de estudos científicos ocupadas. Quando o governo chinês blindou o país, nós recebíamos, imprimíamos e passávamos para a imprensa as notícias que vinham da China junto a nossos comunicados’.
Recuperar a imagem dosblack panthers
Mas quase nada da ocupação saía nem na TV nem nos jornais. Em Palermo, um único jornal ofereceu uma página por semana para que eles contassem a situação do seu próprio ponto de vista. Fora isso, a imprensa ignorou completamente o movimento.La Repubblica (umFolha de S.Paulo, em termos de prestígio) levou uma semana para escrever sobre a ocupação em Roma.
Os publicitários Fabio Ferri e Stefano Palombi já trabalhavam numa grande agência de publicidade, mas não fazia muito tempo que tinham se formado. Querendo colaborar com os estudantes, decidiram explorar um acontecimento que estava sendo usado pela mídia para pulverizar a atenção do público.
Uma pantera, que tinha sido domesticada num jardim urbano, na periferia de Roma, resolveu fugir. Começaram a pipocar relatos de seu avistamento nos arredores da cidade Isso virou a notícia mais importante dos canais de televisão e dos jornais do horário nobre. As pessoas estavam assustadas, preocupavam-se com as crianças. Num tempo em que era impensável fazer vídeos com um celular, alguém conseguiu imagens difusas de um animal negro em fuga, na noite escura. A TV difundiu o vídeo e a coisa foi tomando grandes proporções. A polícia, e até o dono de circo Orlando Orfei, com um laço para animais, davam caça à pantera. Todos os dias tinha um avistamento.
Inspirados no animal que, no fundo, todos queriam livre, Ferri e Palombi decidiram recuperar a imagem da pantera do movimento Black Panthers, dos Estados Unidos. Partiram do inconsciente coletivo daqueles estudantes, todos nascidos por volta de 1968, filhos dos filhos das flores, mas obrigados à letargia e à perda de terreno político nos anos 80. Os dois publicitários juntaram à pantera negra o slogan ‘A pantera somos nós’. Depois, fizeram uma barganha com um dos clientes de sua agência para inserir umspot publicitário na TV. O circo midiático estava armado. Era a tecnologia para fins de resistência.
Imprensa, a grande ausente
Enquanto a pantera dava um baile na polícia e em Orlando Orfei, fax e Okkupanet faziam sua parte na difusão dos slogans que a uniam ao movimento estudantil. ‘A pantera é legal, é Ruperti, o animal’, ‘Universidade privada? A pantera tá danada’. ‘A pantera se rebela, nada de grade, nada de cela’. E, para quem queria desqualificar o movimento, respondia-se: ‘A diferença entre 1990 e 1968? É 22!’. Os estudantes passaram às grandes manifestações e assembleias nacionais, até junho de 1990, quando tudo se encerrou.
Não parece o caso avaliar seA pantera somos nós foi um movimento vitorioso ou não. Seria desmerecer o esforço dos anos 90 em relação ao de 68. De qualquer forma, somente agora, no terceiro mandato de Berlusconi, é que medidas privatistas estão de novo tomando forma no ensino superior italiano.
Na tarde fria do lançamento do livro de Nando Simeone, uma plateia de não tão jovens, participantes deA Pantera, olham-se, emocionados, nos vídeos de vinte anos antes. Alguns já se foram. Outros, como Roberta, da Psicologia de Roma, que intervém num dos filmes, está muito doente. De fato, está para partir. Mas permanece a certeza, até porque as imagens impressionantes das manifestações, os documentários e os livros lançados depois comprovam que aquilo foi realmente importante. Pena, pena mesmo, que não tenha esteja presente ninguém da imprensa, além desta repórter estrangeira e de um jornalista italiano condenado por denunciar os abusos da polícia durante o G8 de 2001, em Gênova.
Fabio Ferri, presente, revive o momento e cola adesivos pelos corredores e salas da Psicologia: ‘La pantera siamo noi.‘ A pantera, eles ali sabem, está muito bem viva.