No programa Big Brother Brasil, uma polêmica foi instaurada devido às infelizes declarações do participante Marcelo Dourado, que afirmou não usar camisinha, pois heterossexuais não pegam Aids e mulher não poderia passar a doença para homens. Devido a este desserviço prestado à população, o procurador regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, Jefferson Aparecido Dias, instaurou uma ação contra a Rede Globo, exigindo que a emissora explique como se pega Aids, segundo critérios do Ministério da Saúde.
A Globo, primeiramente, recusou-se a esclarecer seus telespectadores sobre o tema. Ao contrário, vem reforçando os preconceitos, a apologia do ódio aos gays, cultiva a desinformação e mostra total despreocupação com os riscos à saúde da população. Mas, felizmente, a emissora teve que acatar a acertada decisão judicial. Este fato põe em discussão a diferença, dentro da Comunicação Social, entre ‘interesse do público’ e ‘interesse público’. O primeiro não é muito difícil de definir. Basta pegarmos algumas pesquisas de recepção e audiência, alguns programas que mais chamam a atenção e saberemos o que o público brasileiro gosta de ver. Entre estes sucessos está oBBB, que em sua décima versão ainda cativa os corações dos brasileiros. Mais a situação torna-se mais difícil quando falamos do ‘interesse público’. Sabemos, na maioria dos casos, o que é algo importante para a coletividade. A prevenção de uma epidemia ou a data de cadastramento no Bolsa Família são informações claramente de interesse público, assim como campanhas contra o racismo, a difusão da cultura regional, além de outros. Mas, a grande questão está em como fazer com que as empresas de comunicação cumpram com seu papel, dentro da lei, respondendo aos requisitos básicos para uma concessão pública e respeitando os Direitos Humanos.
O rolo compressor das empresas
Assim está na Constituição:
‘Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo V (Da Comunicação Social). Art. 221 – A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.’
Em todos os locais, áreas ou situações de nossa realidade existe a necessidade do cumprimento das leis, seja no trânsito, no meio rural, na educação, nas relações empregatícias e mesmo na vida privada. Mas existe uma área que parece ser imune a qualquer legislação: a comunicação social. As grandes empresas do setor, de maneira agressiva e organizada, vêm movendo uma campanha contra qualquer interferência em sua programação, como se existisse um passe-livre para estar acima da Constituição Federal e de todas as leis. Desta forma, podem fazer tudo: condenar movimentos sociais sem direito a outra versão dos fatos, manchar reputações pessoais sem que se prove culpa alguma, difundir o racismo, a homofobia, o machismo, a intolerância religiosa e uma variedade de outros preconceitos, além do fato de não cumprirem em nada as exigências básicas de uma concessão pública.
As resistências a esta ‘lei da selva’ midiática são severamente atacadas. Neste sentido, tudo o que exige o cumprimento da lei e o respeito aos Direitos Humanos é censura para o rolo compressor das empresas de mídia. Constituir uma classificação indicativa e uma exigência de melhores horários, para preservar a infância, não pode; tentar criar um conselho profissional de jornalistas, assim como existe em grande parte das profissões, também não é adequado; de forma semelhante, fazer uma Conferência Nacional de Comunicação, como acontece em todas as outras áreas (Saúde, Assistência Social, Educação etc…), é censura; propor, dentro de um Plano de Direitos Humanos, a cassação das concessões de empresas irregulares, é associado a uma ação ditatorial.
Sem acesso às concessões públicas
As corporações da comunicação (isso inclui a área de publicidade) defendem sempre o absurdo da auto-regulamentação, privilégio que nenhuma outra empresa, instituição ou grupo qualquer tem, sobre o nosso solo. E utilizam a eterna falácia da defesa da liberdade de expressão, ou melhor, de uma concepção oportunista e seletiva deste direito.
De duas formas podemos criticar este argumento. Primeiramente, podemos pensar o que seria esta ‘liberdade’. Neste meio que estamos nos comunicando agora, a internet, existe uma possibilidade bem grande de inúmeros sujeitos e grupos se expressarem. Há algo mais próximo de um direito à comunicação, em que pesem algumas críticas sobre o controle grande das multinacionais (assunto que prefiro não me aprofundar agora). Mas, quando falamos da radiodifusão, existe um problema bem maior. As rádios e, mais acentuadamente, as emissoras de TV, estão nas mãos de um grupo reduzidíssimo de empresas, grupos políticos e religiosos. Existe uma dificuldade e, na maioria das vezes, uma impossibilidade, de vermos a diversidade de nosso conjunto social se manifestar. Existe liberdade quando eu não posso me comunicar? A liberdade vale apenas para quem tem poder financeiro e/ou político, quem pode fazer lobby com parlamentares, ou está ligado aos grandes grupos hegemônicos?
Da mesma forma, podemos falar da impossibilidade de acessar, como emissores de mensagens, os canais que são concessões públicas. Um movimento social não tem o direito de contar a sua versão sobre uma reportagem que criminaliza e marginaliza as suas lutas; uma pessoa injustiçada raramente tem direito a se defender; e as iniciativas de Rádios e TVs Comunitárias e Livres são criminalizadas na Justiça, com o apoio das corporações de mídia.
Uma intervenção necessária
Outro aspecto passível de crítica é a visão de que liberdade de expressão é falar tudo o que quiser, ‘doa a quem doer’. A comunicação e a arte devem ser livres, isso é uma conquista histórica. Mas, como tudo na nossa sociedade, devem estar submetidas a padrões éticos. Pela lógica da grande mídia, se tudo fosse permitido, os profissionais da propaganda nazista não deveriam ser considerados criminosos. Como se agir dentro da representação desse o supremo poder da imunidade.
Uma outra crítica comum é alegar que o grupo dominante dos governos iria controlar opiniões políticas contrárias. Isso, de fato, pode acontecer. Mas não se dá apenas no campo da comunicação. Se existe um governo autoritário e injusto, ele pode condenar pessoas contrárias ao regime pelos motivos mais arbitrários possíveis. Exemplos não faltam, como os EUA, que condenou à morte os anarquistas Sacco e Vanzetti e o ex-pantera negra Mumia Abu-Jamal, além de inúmeros casos de nossa ditadura militar. Para isso ser impedido deve existir uma luta e uma construção democrática, participativa e popular, o que os movimentos sociais reivindicam, impedindo que os espaços públicos sejam monopolizado por determinado grupo político. Não podemos condenar uma política pelos possíveis usos errados que ela poderia vir a ter.
Uma coisa que preocupa bastante nesta luta é a contradição imposta pelos grupos do poder. O debate sobre este tema tem mobilizado diversas pessoas e organizações, mas ele só pode chegar ao grande público através da grande mídia, que tem um interesse particular no assunto. Esta situação em si já evidencia a necessidade de uma intervenção neste quadro anti-democrático.
Mecanismos de avaliação
Portanto, estes tipos de abuso mostram a necessária presença de um controle social popular e da ação da lei sobre a Comunicação. A programação da televisão não pode apenas basear-se no ‘interesse do público’. Este é bem relativo, muda de acordo com períodos e culturas e pode ser educado e trabalhado. Uma programação pode, inclusive, conciliar o entretenimento e o apelo ao público, com a educação, informação e cultura, como defende, por exemplo, a TV pública BBC, de Londres. Mas, acima de tudo, a comunicação social não pode ser visto como negócio, mas sim, como direito.
Obviamente, investir nas emoções mais baixas do ser humano, como a intriga, a discórdia e o preconceito, sempre gerará interesse. É assim com o Big Brother, da mesma forma que era com os cristãos jogados aos leões, os gladiadores lutando até a morte, ou com a propaganda nazista que associava os judeus aos ratos. O que não justifica que este tipo de ação seja aceitável dentro de uma sociedade ética. Porém, não podemos depender de autuações pontuais da Justiça. Torna-se urgente a criação de mecanismos mais constantes de avaliação do que é veiculado pela grande mídia (em especial nas concessões públicas), com a punição aos crimes cometidos.
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Jornalista e doutorando em Multimeios na Unicamp, Campinas, SP