Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Orçamento e campanha eleitoral, exemplo de falsidade múltipla

O leitor atento certamente percebeu. De algumas semanas para cá, todos os jornais passaram a acrescentar – nas reportagens sobre investimento e despesa do governo – que 2006 é ano eleitoral. O aposto constante nas reportagens quer nos sugerir, entre duas vírgulas, que todo e qualquer projeto federal para o ano que vem tem tenebrosas intenções eleitorais. A percepção geral dos grandes grupos de mídia, manifestada por várias de suas colunas políticas e editoriais, é a de que o presidente da República vai assaltar os cofres públicos (aliás, já se está usando expressões como queimar ou torrar dinheiro público) pois Lula só pensa naquilo: a reeleição.

Um dos primeiros sinais foi a amplificação e o detalhamento dos gastos públicos em manchetes principais, entre eles o de que o governo federal tinha R$ 1,5 bilhão de ‘sobras’ para gastar em dezembro. A partir de então, bandeiras das empresas editoriais, como a eficiência do setor público, por exemplo, são desonradas em função do propósito eleitoral. Não importa se vários dos gastos anunciados respondem às cobranças da imprensa. É despesa e é 2006; logo, é por causa da reeleição.

Postas no tempo, contradições vêm à tona. Hoje, por exemplo, reportagens e editoriais de vários jornais e revistas juntam no mesmo saco investimento de governo e eleição no espaço em que se anunciam gastos com o aparelhamento das agências de regulamentação, uma cobrança constante em editoriais. Para a comparação no tempo, lembra-se que, em passado recente, o recrutamento de pessoal para a Policia Federal também era uma exigência comum do setor de mídia. Hoje, o aumento do efetivo da PF entra no mesmo balaio em que se magnífica o ‘inchaço’ do serviço público durante o governo Lula. Nessa perspectiva, o crescimento da folha de pagamento das agências também vai entrar nas relações de despesas com a máquina de governo por causa da eleição presidencial.

A coluna de Elio Gaspari, Folha de S.Paulo e O Globo, de 22 de novembro passado, extraiu do ‘magnífico ensaio’ do jornalista Richard Rovere, do The New Yorker, falecido em 1979, a manipulação jornalística chamada ‘falsidade múltipla’. Rovere é autor consagrado por decifrar os mecanismos de mídia usados pelo senador Joe McCarthy, em sua caçada aos comunistas O período entrou na história com o macartismo e, destrinchado, é de aplicação quase científica. No extrato destacado pelo jornalista brasileiro, lê-se:



‘A falsidade múltipla não precisa ser uma grande falsidade, mas pode ser uma longa série de falsidades tenuemente conectadas, ou uma simples falsidade com muitas facetas. Em qualquer caso, o conjunto tem tantas partes que se torna impossível mantê-las simultaneamente na cabeça. Qualquer tentativa de demonstração da falsidade de algumas afirmações, deixa a impressão de que só aquelas afirmações são falsas e as outras são verdadeiras’.


Outra fórmula é o da meia-verdade, às vezes pior do que a mentira deslavada, que reside em pendurar uma palavra naquilo que foi dito pela autoridade. A recente entrevista da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, ao O Estado de S.Paulo, ganhou nesta semana a companhia da entrevista com o ministro do Desenvolvimento Industrial, Luiz Fernando Furlan, também publicada no Estado. Como a ministra fizera antes, o ministro Furlan enviou carta ao jornal desmentindo formalmente as aspas que lhe foram atribuídas. As iniciativas foram inúteis: o que prevaleceu foi a ambientação de crise entre ministros com novo disparo de fogo amigo. Furlan negou, como registrou o post do Contrapauta do dia 14 passado, mas a falsidade apontada por Rovere continua sendo martelada como verdade absoluta.

O exemplo que resume essa teoria encontra-se na reportagem da revista Veja desta semana, ‘O Comitê da Reeleição’. Não adiantou o ministro desmentir em carta ao jornal. A revista chama o que o ministro não disse de ‘diagnóstico demolidor do governo’, acrescenta outra ‘falsidade tenuemente conectada’:


‘A prova cabal de que o que Furlan diz é verdade é o fato de ele não ter sido demitido por Lula’.

Enquanto isso, não há previsão para a votação do Orçamento Geral da União do ano que vem.