Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A arte de perguntar

O jornalista Geneton Moraes Neto, é um gênio da raça. Da raça dos jornalistas. Sua empreitada atual é escarafunchar os subterrâneos da ditadura militar, ouvindo agora a voz sempre silenciosa de alguns de seus principais personagens: os generais.


No sábado (3/4), o Globonews Dossiê de Geneton entrevistou o general Leônidas Pires Gonçalves, ex-comandante do DOI-CODI do I Exército, no Rio de Janeiro, no período mais sangrento do governo Ernesto Geisel.


No sábado (10/4), será a vez do general Newton Cruz, o notório Comandante Militar do Planalto, que em 1984 chicoteava os carros na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, enquanto suas tropas cercavam o Congresso no momento em que o trator governista esmagava em plenário a emenda das Diretas Já.


Fantasias fardadas


O primeiro impacto foi provocado pela bombástica entrevista de Leônidas, mais conhecido como o primeiro ministro do Exército pós-ditadura, o general nomeado por Tancredo Neves e que se tornou o principal cabo eleitoral e fiador da posse de José Sarney. No Globonews Dossiê, a primeira surpresa é que o entrevistado aparece não como o ministro da democracia, mas como o chefe da repressão da ditadura. Leônidas é identificado, na legenda, como ‘chefe do DOI-CODI, 1974-77’.


O general falou, com uma fluência inédita e uma sinceridade desconcertante, levantando temas que beiram a fantasia, a leviandade e a arrogância. Desafiou qualquer um a dizer que foi torturado no DOI-CODI que ele comandou durante quase três anos, na fase mais turbulenta do governo Geisel. ‘Não houve tortura na minha área’, garantiu Leônidas.


Deve ser um milagre na Terra, porque no mesmo I Exército, comandado pelo general Sylvio Frota entre julho de 1972 e março de 1974, o DOI-CODI carioca era um centro de morte, conforme apurou O Globo. Naquele espaço de 21 meses, contou o jornal, morreram 29 presos nas masmorras da Rua Barão de Mesquita, onde funcionava o centro de torturas do Exército, comandado pelo notório major Adyr Fiúza de Castro, um dos radicais mais temidos da ditadura. Bastou chegar ali e assumir o DOI-CODI carioca, diz o general Leônidas, e a paz dos anjos se instalou.


Confessa que foi dele a idéia de subornar um ex-dirigente do PCdoB, Manoel Jover Telles, que revelou local, dia e hora da reunião do Comitê Central do partido, em dezembro de 1976, em São Paulo. Leônidas diz que entregou uma quantia equivalente a R$ 150 mil à filha do delator, que depois ganhou um emprego na fábrica de armas Rossi, em São Leopoldo, onde hoje vive aposentado. A operação de cerco foi montada pelo chefe do setor de operações do CIE (Centro de Informações do Exército), coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o criador e primeiro chefe do DOI-CODI paulista do II Exército, na Rua Tutóia.


Ustra comandou pessoalmente o ataque à casa do PCdoB, num tiroteio que prendeu dirigentes e matou três chefes do partido num entrevero sangrento conhecido como o ‘Massacre da Lapa’. Por coincidência, o coronel Ustra chefiou a tropa de ataque do CIE no mesmo período – 1974-77 – em que o general Leônidas comandava o remanso de paz da Barão de Mesquita. Entre outras fantasias, Leônidas continua acreditando que o jornalista Vladimir Herzog é apenas um ‘suicida assustado’ pelo simples fato de ser convocado ao centro de torturas da Tutóia.


Efeitos desastrosos


O que não surpreende, nesta entrevista, é a competência do entrevistador, talvez o melhor perguntador da imprensa brasileira. Aos 54 anos, Geneton Moraes Neto é um repórter discreto, persistente, talentoso e criativo, que tem o faro da notícia e uma habilidade invulgar para fazer as perguntas precisas para as pessoas certas nos momentos mais inesperados, jogando luz sobre a história e dissecando biografias com a precisão de um legista. No seu blog, faz um relato bem-humorado de uma carreira que começou como repórter no Recife, onde nasceu, passou por Paris, onde sobreviveu como camareiro de hotel, motorista e estudante de cinema, e continua agora no Rio, onde é um dos astros mais tímidos da equipe de jornalismo da Rede Globo. Lá foi editor-executivo do Jornal da Globo e do Jornal Nacional, correspondente em Londres, repórter e editor-chefe do Fantástico, até pousar na Globonews como repórter de matérias especiais.


Entre uma e outra pauta na TV, Geneton ainda encontra tempo, método e talento para escrever. Já são nove livros, entre 1983 e 2007, que revelam o prazer visceral de um jornalista veterano que exibe o ardor de um repórter iniciante. Ele mesmo se descreve, exibindo a diversidade de quem descobre temas e personagens de velhas histórias renascidas e recontadas com o viço de coisas novas, diferentes e inéditas. Escreve Geneton sobre seu fascínio pelo bom jornalismo e suas peripécias:




‘É a melhor profissão para quem não consegue ser outra coisa na vida. [Tive] a chance de percorrer corredores da morte em prisões de segurança máxima americanas, ruínas de campos de concentração na Alemanha, além de entrevistar três astronautas que pisaram na Lua, duas sobreviventes do naufrágio do Titanic, o co-piloto do avião que jogou a bomba atômica sobre Hiroshima, o produtor de todos os discos dos Beatles, o assassino do líder negro Martin Luther King, o promotor britânico que comandou a condenação dos criminosos nazistas no Tribunal de Nuremberg, o agente secreto britânico que armou um atentado – frustrado – para matar Hitler, o golpista que engendrou o célebre assalto ao trem pagador inglês. Entre trancos e barrancos, o jornalismo pode valer a pena.’


E vale mais a pena quando vem pelo cálamo e pelo talento de Geneton, que consegue tornar simples uma dos mais complexos fundamentos do jornalismo: a arte de perguntar.


Uma pergunta bem formulada, precisa, cirúrgica, não deixa saída ao entrevistado, não permite fuga, não abre desvios. O bom repórter, antes da acuidade para ouvir, deve ter a competência para inquirir. E, neste campo, ninguém é melhor, mais certeiro, mais direto do que Geneton. Seus livros e seus programas na TV valem por um curso completo de jornalismo.


Algo mais doura esta habilidade inata de Geneton. Suas perguntas são objetivas, enxutas, minimalistas. Deve-se desconfiar, sempre, de repórteres que gastam cinco, dez, quinze linhas para formular uma simples pergunta, o que acaba revelando geralmente uma cabeça complicada, enredada, confusa. Os repórteres brasileiros estão cada vez mais prolixos, fluviais, espichados, em perguntas que mais confundem do que explicam.


A receita fica pior quando o repórter atrapalhado resolve emendar duas, três, quatro perguntas numa só. Em jornalismo escrito, é um erro factual. Na telinha da TV, é um erro mortal, porque tem dois efeitos desastrosos. Para o entrevistado, dá a chance dourada de desprezar a pergunta mais incômoda e difícil para escapulir pela resposta mais favorável. Para o telespectador, figura passiva e indefesa diante do que vê e ouve, a barafunda de perguntas em cascatas embaraçam conceitos e embaralham frases.


Vale a pena


A quem ainda não aprendeu que, no jornalismo, o entrevistado é sempre mais importante do que o repórter, a lição de humildade e competência de Geneton Moraes Neto é sempre um alento para quem está disposto a crescer no jornalismo.


Sem arrogância, Geneton enfrentou o general Leônidas com perguntas precisas que iluminaram a história e conseguiram arrancar o melhor (e o pior) do chefe da repressão política que se orgulha de seu trabalho na ditadura. Preocupado com a edição do programa na TV, Leônidas se apressou em ensinar jornalismo a Geneton: ‘Que minhas idéias não sejam suprimidas na edição. Se houver um corte, você me deixa mal’, avisou o general, esquecido de que o regime que ele defendeu se esmerava em cortes sistemáticos pela censura burra que suprimia idéia e fatos que sempre deixam mal as ditaduras. Geneton não cortou, e ainda assim o general Leônidas ficou muito mal pelas idéias que exprimiu, livremente.


Sempre educado, mas incorrigivelmente firme, Geneton questionou a exótica versão do general de que líderes do regime deposto – como Arraes, Brizola, Jango, Prestes – saíram do Brasil, a partir de 1964, ‘porque quiseram’. Leônidas mirou no ex-governador Miguel Arraes:


– Ele podia ficar em casa.


– Deposto – emendou Geneton.


– E qual é o problema? – admirou-se o general.


– Todo – encerrou Geneton, com a sintética sabedoria que o general, aos 88 anos, ainda não apreendeu. – Não havia condições de exercer a política no Brasil, naquela época, general.


O ex-chefe do DOI-CODI desdenhou toda uma fase de arbítrio e violência, dizendo que o país não teve exilados pelo golpe de 1964, mas apenas ‘fugitivos’.


– Eles que ficassem aqui e enfrentassem a justiça – pregou Leônidas.


– General, num regime de exceção, a justiça não é confiável – replicou o repórter.


Geneton Moraes Neto, por coisas assim, é uma prova de que, com ele, o jornalismo vale a pena.

******

Jornalista