O que tem em comum as palavras ‘descaso’ e ‘despreparo’? Segundo o Dicionário Houaiss, apenas o fato de ambas serem substantivos masculinos.
A definição de ‘descaso’ do dicionário é ‘procedimento próprio daquele que não dá importância ou atenção a; desconsideração, desdém, desprezo’. Já a de ‘despreparo’ admite duas interpretações. Numa, é ‘falta de organização; desarranjo, desarrumação’; noutra, é ‘ausência de preparo, de conhecimento’.
Pois é. Apesar da distância oceânica entre as duas palavras, ambas são apresentadas hoje como sinônimos na primeira página do O Estado de S.Paulo, no acompanhamento dos desdobramentos da descoberta do foco de afotsa no Mato Grosso do Sul. Na manchete principal, o jornal morde: ‘Afotsa: UE vê descaso do Brasil’, indicando, no mínimo, julgamento sobre o desempenho do governo. No texto que sustenta o título nobre, assopra: ‘A UE diz que o novo foco de aftosa no Brasil foi resultado de falta de preparo do País para aplicar as medidas fitossanitárias propostas pela UE’.
Para compreender como o jornal viajou sem escala de um sentido para outro, é preciso voltar dois dias, quando o novo foco de aftosa chegou aos jornais. Não só O Estado de S.Paulo, mas todos os jornais, imprimiram a versão de que o reaparecimento do vírus, a 30 quilômetros da fronteira com o Paraguai, era culpa da obstinação do Ministério da Fazenda com o superávit primário, o que estaria levando a pasta a não liberar recursos para os demais ministérios.
A ‘culpa’ alegra tanto a esquerda quanto à direita. De um lado, serve como novo argumento para que se continue malhando no atacado ‘a política econômica’; do outro, exime os criadores de gado de qualquer responsabilidade sobre as medidas que poderiam ser tomadas para evitar a doença e os prejuízos – ainda não computáveis – para as exportações brasileiras. Os números serão expressivos, pois o Brasil é o maior exportador de carne bovina fresca do mundo.
Os jornais de hoje começam a clarear o cenário. O ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, que anteontem apareceu no noticiário indignado com a retenção de verbas para sua pasta – justamente as destinadas ao controle sanitário –, hoje dá marcha-a-ré, diante da nova informação de que o dinheiro foi, sim, liberado e que o ressurgimento da aftosa, portanto, pode ter origem na gestão dos recursos da Agricultura. Além de desarmar o Rodrigues, apenas hoje os jornais começam a levantar outra possibilidade: o descaso – aqui empregado no seu sentido lato – dos próprios criadores de gado. Um dos sócios da fazenda infectada, Luiz Henrique Vezozzo, deu outra versão – que não pode ser descartada – de que o ressurgimento no vírus em sua propriedade pode ter sido provocado de maneira criminosa. O produtor encontrava-se em viagem à Dinamarca, situou a reportagem do Valor Econômico. Hoje, o Jornal do Brasil traz que o Serviço de Inteligência do Departamento de Operações de Fronteira não descarta essa possibilidade, uma vez que outra sócia da fazenda, Emília Vezzozo, ‘sustenta que vacinou os animais’. Diz ainda o JB que ‘o pedido de investigação foi feito pelo Estado do Mato Grosso do Sul. A hipótese de infecção proposital, no entanto, não foi confirmada pelo governo federal’. Apesar de abrir a possibilidade, a manchete principal do jornal – ‘Trapalhadas do governo forçam cortes na carne’ – antecipa de quem é a culpa.
A Folha de S.Paulo toma rumo similar em sua manchete principal ‘Após detectar foco, governo quer fundo contra aftosa’. O título pode transmitir a impressão de que o governo (federal) resolveu colocar a tranca na porta depois do ladrão ter entrado. Apesar da conotação que se pode extrair da manchete, a reportagem traz repercussão positiva da idéia sugerida ontem pelo ministro Rodrigues.
As lições que o vai-e-vem do noticiário produziu nos três últimos dias são várias. Uma delas é celeridade com que a imprensa, de maneira geral, apontou o governo federal como único culpado pelo desastre. Outra é que a agilidade persecutória levou à eleição do culpado sem informações precisas. Ou seja: antes de apurar, a mídia se preocupou em julgar. Esse mesma constatação pode ser aplicada a vários dos escândalos em curso, onde sobram candidatos ao posto de réu mas falta precisão nas denúncias.