Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um jornal ferido de morte

Fazer jornalismo com jornalistas pagos para exercer a profissão é uma conquista da sociedade que se materializa, nas democracias, em mais compromisso e qualidade, ou seja, mais liberdade de imprensa e cidadania da mídia. Vale lembrar que não faz muito tempo a profissão de jornalista ainda era um bico no Brasil, o que condizia com o subdesenvolvimento do país e a precariedade das instituições.

O jornalismo era uma segunda atividade para a maioria dos seus fazedores. Raros eram os profissionais que viviam do trabalho nas redações. Tinham de ter outro emprego que lhes pagasse as contas ou se submeter a gorjetas. Isso começou a mudar com aÚltima Hora, no início dos anos 1950. Seu criador e diretor por duas décadas, Samuel Wainer, introduziu níveis de remuneração que equipararam o jornalista aos demais trabalhadores, o que fez e faz diferença, não só para a vida do profissional como também para o produto do seu trabalho.

Não foi somente esta, nem foram poucas, as mudanças que aUH trouxe ou ajudou a consolidar na imprensa brasileira. Além de dono, Samuel atuava e se portava como jornalista, o que também faz grande diferença. Ele e seu jornal eram comprometidos com a causa democrática e com a notícia, que são ou deveriam ser os valores mais caros do jornalismo. Introduziram no país um tipo de imprensa popular na temática, na linguagem e na forma gráfica. Com acertos e erros, aUH foi um dos mais importantes jornais que existiram no Brasil.

Desfile de personagens

O livroA rotativa parou: os últimos dias da Última Hora de Samuel Wainer conta, como aventura e drama, o fim desse grande jornal. É o relato de um momento marcante da imprensa e da história do país, através do olhar e da emoção de Benício Medeiros, então um foca, vivendo a dor e a delícia do primeiro emprego de repórter.

É, portanto, também um livro de memórias, que revive episódios e protagonistas da imprensa cuja influência se estendeu por décadas e alcança o presente. É, ainda, uma obra que oferece o bônus da leitura sedutora, como um romance, às vezes comovente, outras engraçado, sempre incitante, com uma página puxando a seguinte.

Editado pela Civilização Brasileira, o livro traz uma coleção de fotos do acervo daUH carioca, selecionadas no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Os episódios narrados foram vividos ou testemunhados pelo autor. Além de Samuel e seu time de jornalistas, há um desfile de personagens de destaque na vida política, empresarial e cultural da época.

Vontades de censura que se renovam

Benício ficou somente pouco mais de um ano naUH, mas a sua narrativa dá conta não só das angústias e esperanças daqueles dias, no começo dos anos setenta, mas também do nascimento, ascensão, glória e agonia do jornal, que foi ferido de morte pelo golpe de 64 e resistiu aos trancos até imprimir a última edição em abril de 1971, um dos momentos mais sufocantes da vida do país. O título foi comprado e sobreviveu por mais alguns anos. Era, porém, outro jornal, apenas como o mesmo nome.

Não foi por acaso que aUH sofreu o estertor no curto período do primeiro trabalho de Benício. Aquele foi o momento mais tenebroso da ditadura brasileira, com a propagação da tortura e do assassinato nos quartéis e, é evidente, com a censura calando a imprensa.

À sua folha de serviços prestados à imprensa, Benício acrescenta mais este. Ao contar o fim daUH, relembra o terror e a vergonha da época, o que nos ajuda a refletir sobre vontades de censura que agora se renovam. Ao lembrar o começo da profissionalização na imprensa, nos anima a imaginar que a ideia de fazer jornalismo sem jornalistas talvez não signifique exatamente progresso para a imprensa e para a democracia.

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Jornalista