A imprensa, ao fazer tantas denúncias, obriga-nos a perguntar a advogados o que podem esperar os titulares daqueles nomes e rostos apresentados como corruptos ou corruptores, mais aqueles do que esses, pois esses costumam ser estranhamente poupados. Se todos são iguais perante a lei, todos são inocentes até prova em contrário.
Mas, como sempre acontece em casos semelhantes, não estão sendo apenas denunciados. Já foram julgados e condenados. E começam a cumprir as respectivas sentenças que a imprensa, não o Judiciário, lhes impôs.
Assim, alguns deles já estão sofrendo constrangimentos em lugares públicos, de que foi exemplo a saia justa por que passaram José Genoíno, presidente do PT, e o líder do governo na Câmara, o deputado Arlindo Chinaglia, numa churrascaria, em São Paulo, no sábado (25/6). Alguns clientes, aos gritos de ‘olha o mensalão’, xingaram os dois, que se atreveram a tirar satisfações, mas foram convidados a se juntar aos indignados. O desfecho, imprevisível nesses casos, poderia ter sido muito pior.
Terno branco
A revista Veja desta semana criou um neologismo: ‘organolama’. À semelhança de organograma, faz a representação gráfica das personagens mais citadas nos escândalos do ‘mensalão’.
Já adotados como substantivos, ‘organolama’ e ‘mensalão’ vêm sendo grafados sem aspas: a imprensa já as dá como palavras novas que acabaram de entrar para a língua portuguesa, nascidas em berço enlameado.
Nas páginas 74 e 75 da edição corrente de Veja (nº 1.911, de 29/6/2005) , em fotos legendadas por quem escreveu com luvas de pelica cobrindo mãos de ferro, sete figuras públicas aparecem afetadas por vergonhosa lama.
Waldomiro Diniz abre a seção, com lama até acima dos olhos. Dele só aparecem a testa e os cabelos. A seguir vem Delúbio Soares, o tesoureiro do PT: a lama já lhe subiu à barba e se aproxima da boca. Gesticula, mas aparecem apenas os dedos da mão direta, já tomada pela lama.
Na seqüência vem o deputado José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil, ou ministro-chefe, como costuma ser referido desde os tempos em que o chefe da Casa Civil ainda não tinha o status de ministro e era preciso consolidar o título. Todos os ministros são apenas ministros, mas o da Casa Civil é ministro-chefe, como aceitou a imprensa, sem jamais questionar. Pois a lama encobre José Dirceu até encobrir o nó da gravata.
José Genoíno, presidente do PT, aparece com lama a meio corpo. Sílvio Pereira, o secretário-geral do PT, está com lama até a cintura. A ex-prefeita Marta Suplicy é exibida com lama até acima dos joelhos e, no caso dela, a legenda é surrealista: ‘Há uma investigação para descobrir se durante sua gestão na prefeitura paulistana houve irregularidades e pagamento de mensalão na Câmara dos Vereadores’. Há uma investigação, não é informado quem está investigando, mas a revista a apresenta atolada na lama.
Fecha a série dos sete o ex-assessor da Casa Civil, Marcelo Sereno, com lama até o meio das canelas.
Com exceção de Waldomiro Diniz, dado como ‘corrupto involuntariamente confesso’ e de Marta Suplicy, objeto de ‘uma investigação para descobrir….’, na legenda de todos os outros, a primeira frase começa com ‘é acusado de…’. E os verbos que seguem são de ação: ‘intermediar pagamento’ (Delúbio Soares), ‘comandar o mensalão’ (José Dirceu), ‘controlar a diretoria de tecnologia da estatal em que grassaria a corrupção’ (Sílvio Pereira). Marcelo Sereno é acusado de ‘ter sido informado das traficâncias’, ‘ter feito silêncio’ e ‘participar da arrecadação de dinheiro ilícito’.
Por fim, encimando os sete, aparecem o publicitário Marcos Valério, no epicentro da matéria, em entrevista cujo título é ‘Ele visitava o palácio’, e o presidente Lula, de terno branco todo enlameado, com a foto assim legendada: ‘Está sob suspeita de ter sido advertido sobre a existência do mensalão em duas oportunidades – pelo governador de Goiás, Marconi Perillo, e pelo deputado Roberto Jefferson – e não ter agido com a energia necessária’.
Sem assinatura
A espada de Dâmocles está posta sobre muitas cabeças: as dos acusados e a da imprensa. Somente o Judiciário está autorizado a dizer quem é culpado, do quê e qual a pena. Mas já foram julgados, tanto os notoriamente culpados como os presumivelmente inocentes.
A menos que aceitemos apenas o quarto poder, é preciso aguardar o que vai dizer um dos três que constituem estruturalmente o Estado de Direito: o Executivo e o Legislativo já recorreram ao Judiciário, como caso da CPI dos bingos, e foi dele a última palavra.
Por enquanto estamos nas primeiras palavras. Os ritos de um julgamento tão sério, de coisas tão graves, demandam mais tempo do que requerem edições diárias de jornais ou semanais de revistas.
É difícil ter paciência para aguardar as duas etapas seguintes, a defesa e o julgamento, mas é indispensável. Do contrário, só serão ouvidas, solitárias, solidárias e provavelmente orquestradas, a vozes dos acusadores – como, aliás, fazia o PT quando na oposição.
Haja o que houver, porém, de uma coisa o distinto público já sabe: os inocentes já pagaram o preço que a imprensa lhes impôs.
E as penas são irrecorríveis. É verdade que, como em todos os ofícios, jornalistas diligentes esmeraram-se em obter provas do que ousaram afirmar em matérias assinadas. A de Veja não é assinada por ninguém. Isto é, a revista assume a autoria.