Você eu não sei, mas o bloqueiro aqui tem a ligeira impressão de que esta semana o tempo passou na janela e a imprensa brasileira não ajudou o leitor a ver.
O tempo, no caso, foram dois acontecimentos que fizeram o bonde da história dar uma acelerada.
Um foi a decisão da OEA, aprovada por consenso graças ao competente meio-de-campo da diplomacia brasileira, de tornar sem efeito, depois de 37 anos, a suspensão de Cuba da organização.
O outro acontecimento foi o discurso do presidente americano Barack Obama na Universidade do Cairo. Nunca antes um inquilino da Casa Branca disse coisas tão desagradáveis a ouvidos israelenses.
A decisão da OEA tem significado antes de mais nada simbólico. Ela não abre automaticamente as portas para o reingresso de Havana à entidade. Mas elimina do Continente uma das últimas duas relíquias da Guerra Fria. A outra, que fatalmente será varrida, mais dia, menos dia, é o embargo econômico americano a Cuba.
Com 55 minutos e 7 assuntos, o discurso de Obama foi o mais longo e o mais ambicioso destes seus quase 5 meses na presidência. O seu significado fica em algum lugar entre o simbólico e o concreto – dependendo do que ele fizer daqui para frente em matéria de traduzir palavras em ações.
Uma coisa é certa: por mais desgastado que seja, o adjetivo “histórico” se aplica tanto aos resultados da reunião dos chanceleres americanos em Honduras quanto, mais ainda, ao conteúdo do pronunciamento de Obama no Egito, no segundo dia de uma viagem que o levou primeiro à Arábia Saudita.
Com a sua excepcional capacidade de escolher palavras e dar aos que as ouvem a certeza de que ele pensa exatamente o que diz, Obama mexeu com a chamada “rua árabe”. O homem falou até em colonialismo e que no Oriente Médio americanos e russos puseram os árabes a brigar entre si no lugar deles. Não há memória de outro presidente americano que tenha se dirigido a uma platéia árabe-muçulmana desse modo. Difícil imaginar que isso dê em nada.
Os jornais brasileiros noticiaram em geral corretamente os dois fatos – a mancada ficou por conta do Globo que, dos três grandes (os outros, naturalmente, são a Folha e o Estado), foi o único a não dar Obama na manchete, limitando-se a dar no pé da primeira página uma foto de dois militantes encapuzados seguindo o discurso pela TV.
Mas aí é que está. Tem horas que cobrir corretamente certos eventos é pouco. Eles pedem para ser tratados de tal forma que o leitor tenha a clara percepção de estar diante da história em movimento.
É certo que as atenções brasileiras estão voltadas estes dias para o mistério da tragédia com o Airbus da Air France, assim como os britânicos estão contando o que parece serem os últimos batimentos políticos do primeiro-ministro Gordon Brown e os italianos estão esquadrinhando de lupa em punho as fotos da festinha do seu premiê Silvio Berlusconi.
É assim mesmo: o local vem antes do universal.
Mas fazer jornalismo de qualidade é também ter – e transmitir – um senso de proporção dos acontecimentos. Se é verdade, como dizia o escritor (e jornalista) húngaro Arthur Koestler, que um dente cariado incomoda mais do que mil mortos em alguma paragem do mundo, verdade é também que da pauta do ofício faz parte alertar o público para “as coisas dos outros” quando elas são poderosas o bastante para serem, objetivamente, coisas de todos.
E por falar em coisas de todos
Cumprimentos a quem de direito no Estadão pela iniciativa de transcrever no caderno de Economia da edição da quarta-feira, 3, o artigo do cineasta americano Michael Moore sobre a quebra da General Motors e o problema mundial do automóvel particular. Beleza pura. Eis os principais trechos:
É uma triste ironia que a companhia que inventou a ‘obsolescência planejada’ – a decisão de construir carros que se desmantelariam após alguns anos para que o consumidor tivesse de comprar um novo – agora se tornou obsoleta.
Então, aqui estamos ao pé do leito de morte da GM. O corpo da companhia ainda não esfriou, e eu me vejo cheio de – ousaria dizê-lo – alegria. Não é a alegria da vingança contra uma corporação que arruinou minha cidade natal e trouxe miséria, divórcio, alcoolismo, sem-teto, debilitação física e mental, e vício em drogas para as pessoas com as quais cresci. Eu não tenho, obviamente, nenhuma alegria em saber que mais 21 mil trabalhadores da GM serão informados de que também eles estão sem trabalho.
Mas os Estados Unidos agora possuem uma empresa automobilística! Eu sei, eu sei… quem, na terra, quer gerir uma montadora de carros? Quem de nós quer 50 bilhões de nossos dólares atirados no buraco sem fundo para tentar ainda salvar a GM? Salvar a nossa preciosa infraestrutura industrial, porém, é outra questão e deve ser uma alta prioridade. Se permitirmos o fechamento e desmantelamento de nossas plantas automotivas, nós dolorosamente desejaremos ainda as possuir quando percebermos que essas fábricas poderiam ter construído os sistemas de energia alternativa de que hoje desesperadamente precisamos. E quando percebermos que a melhor maneira de nos fazer transportar é em trens-bala e de superfície e ônibus mais limpos, como faremos isso se tivermos permitido que nossa capacidade industrial e sua força de trabalho especializada desapareçam?
Tal como fez o presidente Roosevelt após o ataque a Pearl Harbor, o presidente Obama precisa dizer à nação que estamos em guerra e precisamos imediatamente converter nossas fábricas de automóveis em fábricas que produzam veículos de transporte de massa e dispositivos de energia alternativa. Em poucos meses de 1942, em Flint, a GM paralisou toda a produção de carros e usou imediatamente as linhas de montagem para construir aviões, tanques e metralhadoras. A conversão não tomou nenhum tempo. Todos se empenharam. Os fascistas foram destruídos.
Estamos agora num tipo diferente de guerra – uma guerra que foi conduzida contra os ecossistemas e foi movida por nossos líderes corporativos. Essa guerra atual tem duas frentes. Uma tem seu quartel-general em Detroit. Os produtos construídos nas fábricas de GM, Ford e Chrysler estão entre as maiores armas de destruição em massa responsáveis pelo aquecimento global e o derretimento de nossas calotas polares. As coisas a que chamamos ‘carros’ podiam ser divertidas de guiar, mas são como um milhão de adagas no coração da mãe natureza’.
Persistir na sua fabricação só levará à ruína de nossa espécie e de boa parte do planeta.
A outra frente nessa guerra está sendo travada pelas companhias de petróleo contra você e eu. Elas estão empenhadas em nos depenar sempre que puderem, e têm sido as gerentes implacáveis da quantidade finita de petróleo que está localizado sob a superfície da terra. Elas sabem que o estão sugando até o bagaço. E como os magnatas da madeira no início do século 20, que não davam a mínima para futuras gerações quando derrubaram as florestas, esses barões do petróleo não estão dizendo ao público o que eles sabem que é verdade – que existem apenas algumas poucas décadas de petróleo aproveitável. E à medida que os últimos dias do petróleo se aproximam, nos preparar para algumas pessoas muito desesperadas dispostas a matar e ser mortas apenas para pôr as mãos num galão de gasolina.
Há 100 anos, os fundadores da GM convenceram o mundo a desistir de seus cavalos, selas e carruagens para tentar uma nova forma de transporte. Agora chegou a hora de nós dizermos adeus ao motor de combustão interna. Ele pareceu nos servir tão bem por tanto tempo. Nós gostávamos de fazer malabarismos com os carros, tanto sentados no banco da frente como no de trás. Assistíamos filmes em grandes telas ao ar livre, íamos as corridas da Nascar por todo o país. E víamos o Oceano Pacífico pela primeira vez através da janela na Highway 1. E agora isso acabou. Este é um novo dia e um novo século.