Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O panorama é o mesmo

Impressionante a mesmice que se impõe aos radioouvintes e telespectadores nas transmissões esportivas. Talvez pelo fato de que, hoje, a comunicação televisiva sobrepuje a radiofônica, pois aquela, além de sonora, é visual e colorida, o que permite maior número de sensações ao se receber a transmissão e, paradoxalmente, provoca menor reflexão no receptor, a quem é imposta absurda passividade em decorrência da monótona repetição de expressões e ideias.

É fato que, no país, só existe uma rede de televisão que cria e traz ideias – raramente capazes de levar o telespectador a expandir seu senso crítico. As demais redes nada fazem além de copiá-la, exibindo, muitas vezes, como a emissora modelo, a metalinguagem em sua grade, com programas sobre seus próprios programas. Muito mais grave: uma emissora menor faz programa sobre a programação da mãe televisora.

Tal estagnação do pensamento invadiu, e com muita força, a narração esportiva da TV, especialmente.

A mais poderosa emissora dispõe de um locutor – sem dúvida muito talentoso, criador de diversos chavões de que se vale em suas narrações e que foi tomado como o modelo original por diversos outros, de várias emissoras, inclusive de rádio, que, sem o mesmo talento, se socorre desses chavões para ilustrar suas narrativas, trazendo, assim, para a transmissão esportiva, em especial a de futebol, um terrível legado, o do ditatorial discurso único.

Imitadores de ‘ídolos’?

E discurso único sempre é fonte de preocupação para quem defende a livre e democrática manifestação de pensamento. Considere-se a expressão consagrada na ditadura militar pelo então ministro e comandante das finanças do país, Delfim Neto:a ditadura do pensamento único.

Dessa forma, os psitacóides atuam como inocentes úteis, ampliando o alcance do discurso de outro, homogeneizando a narração esportiva, certamente por incapacidade de criar outras formas de expressão. Que pobreza intelectual!

Tal situação nos remete à sintomática lembrança de caso contado pelo mais criativo cronista esportivo de toda a nossa história jornalística e, infelizmente, recentemente falecido, o grande Armando Nogueira, que contou, em uma entrevista na televisão, que no início de sua carreira o dono de um jornal lhe perguntou o que sabia fazer na imprensa. O cronista maior confessou que nada sabia. E a reação do dono do jornal foi imediata: vai trabalhar na página esportiva…

Mas, a história das transmissões esportivas não se escreve apenas por imitadores.

Quem seria capaz de dizer que Osmar Santos – o criador de ‘ripa na chulipa’; Geraldo José de Almeida – com seus superlativos ‘lindo, lindo, lindo’ e ‘por pouco, pouco, muito pouco, pouco mesmo’ ; o espirituoso Silvio Luiz: e suas marcas narrativas ‘olho no laaaanceeeeeeeeeee’, ‘pelo amor dos meus filhinhos’ e ‘ pelas barbas do profeta’, além de Waldir Amaral e seu inesquecível ‘indivíduo competente’, Jorge Curi ‘dá-lhe, garoto’, ‘passa de passagem’, os inigualáveis Oduvaldo Cozzi, Antônio Cordeiro, Fiori Gigliotti, Doalcey Bueno de Camargo e o grande Ary Barroso, com sua gaitinha imitavam algum ‘ídolo’?

Dificuldades linguísticas repetitivas

Atualmente, o ‘discurso único’ se manifesta nas falas de locutores de emissoras ‘concorrentes’ e até de comentarista de rádio, que – por preguiça de pensar, criar ou baixa autoestima, a qual leva o narrador ou comentarista a se depreciar diante de outro mais famoso ou, quem sabe, incompetência linguística, se não houver outra etiologia não identificada – incorporam a seu pensamento expressões como o metafórico ‘ entrou rasgando’ , o insosso ‘é só tiro de meta’ e, principalmente, o de incomparável mau gosto solecismo causado pelo vicioso emprego da preposiçãoem e sua contraçãono, em expressões como ‘ toca no Fulano’, em lugar de toca para o Fulano; o capcioso ‘mete no Sicrano’ (sic), além do inconfundível ritmo, entonações e gestualidade tipificados pelo comandante das transmissões da emissora global, Galvão Bueno, sempre acima de todos e de jurisdição universal, por isso copiado em papel carbono de má qualidade por colegas acríticos, alguns até com algum tempo de atividade na função em várias emissoras.

E, assim, o imaginário dos espectadores se atrofia cada vez mais. E só resta a cada um eternizar literalmente as palavras de Sócrates, sem a reflexão do filósofo: ‘Só sei que nada sei’.

Ressalte-se que em outros campos jornalísticos não se percebe tal fenômeno. Alguém já ouviu algum apresentador de telejornal imitar o enfático Boris Casoy ao criticar uma situação corriqueiramente agressiva a qualquer parâmetro ético e dizer ‘Isto é uma vergonha?’ Certamente ninguém.

Todavia, nos noticiários de trânsito da cidade, parece que a dificuldade linguística também se apossou dos redatores, ao utilizarem a repetida expressão ‘em tal região..o panorama é o mesmo‘.

As faculdades de Jornalismo poderiam muito bem se preocupar com essa deformação, pois, afinal, esses repressores da pluralidade linguística seguramente são portadores de diploma de graduação universitária em sua área de trabalho.

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Professor, advogado e produtor cultural