Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Entre o silêncio e o crime

O Vaticano está desnorteado. Como Estado e como religião. A inédita situação ficou visível na Sexta-Feira Santa, quando o reverendo Raniero Cantalamessa – pregador da Casa Papal há 30 anos – comparou as críticas mundiais à hierarquia católica com as acusações e calúnias que sofreram os judeus durante séculos.


‘O uso de estereótipos, a passagem da culpa e responsabilidade pessoal para a culpa coletiva lembram os aspectos mais vergonhosos do anti-semitismo’, disse o pregador. Horas depois ele foi desautorizado pelo porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi.


Intelectual de alto nível, o sacerdote franciscano Cantalamessa serviu-se de uma metáfora no mínimo insultuosa: ao longo de mais de um milênio as acusações aos judeus de praticarem assassinatos rituais (justamente na época do Pessach sempre próximo da Páscoa cristã) partiram de delirantes pregadores que percorriam a Europa clamando por castigos para os assassinos de Cristo. Impossível registrar o número depogroms, chacinas, linchamentos, violações e expulsões que se seguiram às desvairadas prédicas.


Uma coisa é certa: o preconceito cristão anti-semita solidificou-se e tornou-se institucional. Sobre ele erigiram-se nos séculos 15 e 16 as inquisições ibéricas e, no fim do 19, o anti-semitismo nacionalista e ‘científico’ do qual o nazismo é o fruto mais sanguinário.


Jogo político


O reverendo Cantalamessa, não obstante os atributos intelectuais e espirituais, pecou: mentiu, caluniou, tentou subverter a história imaginando que com isso barraria a onda de críticas contra a tibieza da hierarquia católica diante dos abusos praticados por sacerdotes.


Foi um ato desesperado de um Estado que, de repente, se sente sitiado e vê-se obrigado a apelar para a religião que o sustenta. Desvendou a grande contradição que a ambos fragiliza. Religiões veneram monumentos sagrados, mas transcendem o espaço e o tempo; os mandamentos da fé não podem impor-se à legalidade dos Estados onde é praticada.


A omissão da hierarquia católica diante da avassaladora onda de abusos sexuais partiu de uma premissa enganosa que as Concordatas do Vaticano com países católicos – inclusive o Brasil – só aumentaram: as leis canônicas devem reger apenas a comunidade espiritual, os códigos civis regem as relações sociais. Abuso sexual é pecado, mas antes disso é crime e os crimes devem ser punidos mesmo quando praticados por cidadãos especiais, os sacerdotes.


O celibato e os votos de castidade têm sido apontados como os principais responsáveis pelos desvios sexuais, pelos casamentos clandestinos de sacerdotes, pelo desestímulo às novas vocações e, sobretudo, pela evasão de religiosos já ordenados.


Esta é uma questão para os teólogos. O que tem garantido a impunidade dos pecadores e criminosos é uma questão política: raros são os Estados rigorosamente seculares. Nos Estados Unidos há um pseudo-secularismo que se mantém apenas como fator de equilíbrio confessional, controlador de eventuais hegemonias. Neste território semi-secular, vagamente laico, a igreja católica impõe os seus parâmetros, seus valores e suas leis. O mesmo acontece na Irlanda e na Alemanha. Nestas circunstâncias, até mesmo a mídia torna-se pseudo-secular, acomodando-se às dubiedades e ao jogo político delas resultantes.


Fanatismo e politização


Esta é a explicação para uma impunidade cínica que estimulou e agigantou a pedofilia. De repente, por casualidade ou causalidade estatística, a revelação e o choque nos dias mais sagrados do cristianismo.


Culpar o papa Bento 16 por esta situação é pérfido. O pontífice João Paulo 2º foi o grande protetor do padre Marcial Maciel, criador da Legião de Cristo. Quem puniu o mexicano e enquadrou publicamente sua entidade foi Bento 16 (ver ‘A `Legião´ desmorona, ninguém noticia‘).


A igreja católica enredou-se na sua hegemonia, esta é a verdade. A saída irônica, paradoxal, seria abrir mão dela. O que poderia reverter a atual dinâmica antivaticanista e amenizar o estresse seria a compreensão de que Estados e instituições verdadeiramente seculares – sobretudo a imprensa – são capazes de divulgar com serenidade e punir com severidade os abusos cometidos sob o manto da religião.


Esta não é uma questão que se situa apenas no âmbito teológico ou canônico da igreja católica. Esta é uma questão política capaz de reforçar a espiritualidade das religiões e torná-las menos sujeitas ao fanatismo e à politização.


Martinho Lutero surgiu e fortaleceu-se no meio de um terremoto de idêntica dimensão.