Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O que fazer contra a crise de identidade

A chamada ‘crise do jornalismo contemporâneo’ contribuiu para o surgimento de um pensamento comum sobre os problemas enfrentados pelo noticiário em todas as formas de mídia. Atualmente, os comentários estão centralizados na tese de que os veículos de comunicação publicam ou veiculam o que ‘vende’, e não o que interessa ao público – leitor, ouvinte ou telespectador.


Esse discurso também é utilizado constantemente por partidos políticos, dirigentes esportivos, governantes, personalidades, entre outros grupos que figuram freqüentemente na mídia, quando são contrariados ou se sentem criticados pelo conteúdo jornalístico.


Tal observação não significa que os críticos estejam sempre equivocados ou que a imprensa nunca cometa exageros ou excessos. Pelo contrário: os veículos de comunicação carregam um triste histórico de dar destaque para situações polêmicas, e pequenas notas quando o desfecho é contrário ao que foi anteriormente publicado. Isso quando o fato não é ‘esquecido’ totalmente ou deixa de merecer suíte devido ao critério dos editores.


A crise política do governo federal reacendeu um pouco essa polêmica, principalmente, porque o noticiário, de um modo geral, está priorizando as acusações e deixando para segundo plano (ou à margem do noticiário) os responsáveis pelas denúncias.


Esse fato revela uma faceta que poucas vezes ganha destaque nas discussões sobre a qualidade do noticiário ou dos profissionais: os veículos de comunicação estão passando por uma crise de identidade ou os jornalistas estão mal preparados para exercer essa função?


Experiências e experimentos


Deixando a realidade brasileira um pouco de lado, é possível notar que a discussão sobre o conteúdo jornalístico e interação em busca dos interesses dos leitores ultrapassa nossas fronteiras e pode demonstrar resultados inesperados.


A Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI), entidade criada pelo jornalista e escritor colombiano Gabriel García Márquez, realizou na semana passada um seminário com o tema ‘O futuro do jornalismo e o desenvolvimento profissional dos jornalistas da América Latina’ [ver remissão abaixo].


O evento, que teve a participação de profissionais da Colômbia, Espanha, França, Estados Unidos, México e Brasil, entre outros, abordou questões envolvendo o fotojornalismo, a televisão, o rádio e as agências de notícia, e chegou a conclusões envolvendo questões como a ‘insensibilidade’ e a falta de preparo dos profissionais diante das facilidades tecnológicas.


Darío Fernando Patiño, co-diretor de notícias do Canal Caracol, principal rede de televisão da Colômbia, observou em seus comentários a fragilidade dos profissionais em contraste com o avanço da tecnologia. ‘A tecnologia nos deu vantagens, mas nem sequer aprendemos a contar uma história’, disse Patiño, na abertura do seminário, segundo o relatório publicado pela FNPI [veja a matéria seguinte desta rubrica].


Já Luis Miguel González, diretor editorial do jornal mexicano Público, tomou a editoria de economia como referência para questionar a superficialidade do noticiário. ‘Nos especializamos tanto que caímos na insensibilidade, não mostramos os rostos nem os bolsos dos afetados pelos mercados’, afirmou o diretor, segundo o material divulgado pela organização do evento.


Para quem acha que esse tipo de argumento é uma análise simplista de ‘meros teóricos apocalípticos’, pode-se observar a experiência do renomado Los Angeles Times ao implantar um sistema de interatividade com os seus leitores.


Em 17 de junho, o jornal lançou o ‘wikitorials’ em sua versão online, que tinha como meta produzir editoriais com o auxílio dos leitores. A novidade, que durou apenas dois dias, foi suspensa devido ao excesso de material inapropriado para publicação.


O resultado negativo dessa tentativa de interatividade foi apontado por Edgardo García, pesquisador especializado em jornalismo virtual da Universidade Robert Gordon, da Inglaterra, como o reflexo da perda de uma das funções dos veículos de comunicação que é a formação de opinião. ‘O Los Angeles Times deu um passo transcendental. Quebrou uma premissa básica: os editoriais são a voz política do jornal, influenciam os leitores e são um ponto de referência para as elites políticas’, disse o pesquisador em entrevista ao jornal argentino Clarín de sexta-feira (24/6).


Na contramão desse cenário desfavorável, a edição do New York Times de domingo (26/6) apresentou o perfil do The Journal-World, da pequena cidade de Lawrence, no estado do Kansas. O veículo, que foi considerado pela matéria do NYT como ‘o jornal do futuro’, domina o segmento da comunicação do município de 85 mil habitantes por meio da publicação impressa do jornal, que tem uma tiragem de apenas 20 mil exemplares, e de uma versão online. Além disso, os proprietários do The Journal-World exploram os serviços de TV a cabo e telefonia da cidade.


Não foi esse monopólio, no entanto, que garantiu a condição de líder ao jornal, nem o volume de 7 milhões de acesso mensais do site do veículo online. A fórmula, aparentemente simples, inclui matérias totalmente locais e uma rede de serviços para os leitores.


‘É preciso encher o vazio’


O editor-chefe do The Journal-World e presidente da World Company disse, em entrevista ao New York Times, que não considera o seu veículo como parte do setor jornalístico. ‘Nosso negócio é informação e estamos tentando oferecer informação de uma forma ou de outra, do jeito que o consumidor quiser e onde quiser, da maneira mais completa e útil possível.’ De sua parte, Rob Curley, diretor de novas mídias da World Company, disse na mesma reportagem que o segredo é a identificação entre os leitores e o conteúdo do veículo. ‘Acreditamos que o jornalismo tem sido um monólogo há muito tempo e este é o momento perfeito para que se torne um diálogo com nossos leitores. Queremos que os leitores pensem que o jornal é deles e não nosso.’


Diante dos mais incrédulos, o exemplo de sucesso do diário de Lawrence pode parecer resultado de uma complexa estratégia comercial em uma cidade dominada pelo monopólio de um grupo empresarial. No entanto, a ‘vivência’ e a ‘aproximação’ dos temas abordados demonstram ser ferramentas úteis e eficientes na construção de um veículo de comunicação. Neste sentido, The Journal-World não é o único exemplo de sucesso.


Na Argentina, o Expresiones Jóvenes, produzido na cidade de Concordia, vem ganhando destaque e repercussão nacional. O veículo, que é um dos resultados do projeto ‘Jóvenes Comunicadores’ idealizado e mantido pelo jornalista Oscar Miño, é desenvolvido por crianças e adolescentes, com idade entre 6 e 17 anos, para um público com o mesmo perfil.


As edições, que são coordenadas por um jornalista profissional, abordam temas propostos pelo próprio grupo – como pornografia infantil, ciência, tecnologia, medicina, cultura, ecologia, aborto, bissexualidade e outros.


De acordo com Miño, em entrevista ao site espanhol Periodista Digital, os assuntos abordados são atuais porque retratam a realidade social que as crianças vivem e a qual estão expostas. ‘É preciso encher o vazio que o jornalismo estabeleceu com os pequenos, deixando-os de fora da informação. As seções infantis que são feitas na maioria dos meios gráficos e digitais somente respondem a consignações de marketing.’


A lição de Chaplin


Diante dos exemplos citados, podemos levantar pelo menos dois pontos envolvendo o questionamento inicial do texto, ou seja, os veículos de comunicação passam por uma crise de identidade ou os profissionais estão mal preparados para exercer a função?


Em relação à eventual crise de identidade dos veículos de comunicação, pode-se considerar que o avanço da tecnologia e as facilidades do mundo globalizado estão promovendo muitas confusões. Afinal, os veículos impressos conseguiram a proeza de se tornarem mais eficientes e ágeis, do ponto de vista industrial, aperfeiçoaram a qualidade técnica dos seus produtos (impressão, imagem, som, por exemplo), mas continuam registrando queda no volume de público.


Na seqüência desse raciocínio, chega-se ao segundo ponto como um reflexo do primeiro, ou seja, o desempenho dos profissionais que elaboram o conteúdo desses veículos parece ser o verdadeiro calcanhar de Aquiles da mídia contemporânea.


A sonhada interatividade com o público-alvo (leitor, ouvinte ou telespectador) não será alcançada simplesmente por meio de recursos tecnológicos (como blogs ou canais de intervenções) ou pesquisas de mercado que tracem o perfil do consumidor final e revelem seus desejos e preferências. Essa busca só será concretizada quando os profissionais tiveram a percepção de reproduzir os fatos por meio da ótica do leitor, ou seja, quando ocorrer o ‘envolvimento’ do profissional com a notícia. Essa aproximação não representa uma tentativa de acabar com a ‘imparcialidade’ do jornalismo. Pelo contrário, a vivência do fato é uma ferramenta que contribui para uma melhor interpretação e entendimento das causas e conseqüências do tema retratado.


O quadro que atualmente se percebe nas redações se assemelha ao fordismo do início do século passado, onde tudo se resumia a um esquema de produção em série. No entanto, a logística da informação não permite essa ‘adaptação industrial’.


Diante desse paradoxo, vale parafrasear Charles Chaplin no discurso do filme O Grande Ditador (1940) para contextualizar a situação do jornalismo contemporâneo:




‘Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade.’

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Jornalista e professor universitário