No Brasil, paradoxalmente, mesmo o que dá certo acaba dando errado. Os exemplos são numerosos.
Temos o maior estoque de água doce do planeta, cerca de 14% das reservas da Terra, o que não basta para assegurar que a população esteja satisfatoriamente abastecida e nem evita que as doenças transmitidas pela água de má qualidade continuem como um dos grandes vetores de transmissão de doenças, afetando especialmente a população infantil.
Abrigamos a maior reserva florestal deste mundo e – pelo que é conhecido até agora – de todo o Universo. Mas isso também não garante que cuidemos satisfatoriamente de sua conservação. A destruição de uma área de 400 mil hectares no Mato Grosso, ao longo de uma década inteira, e só denunciado recentemente – na esteira da onda de denuncismo, como se repentinamente tivéssemos criado responsabilidade ética e social – é outro caso.
Do ponto de vista territorial, o Brasil não é o maior país em quilômetros quadrados, mas estamos entre os maiores. Também isso não é o suficiente para permitir que cada família com raízes fincadas no campo, por história, cultura e amor à terra, tenha assegurado seu pedaço de cultivo para lavrar e lançar as sementes. Daí os conflitos que não cessam e a violência que parece não ter limites.
O mesmo pode se dizer em relação às moradias.
Segundo plano
Não deixa de ser irônico que tenhamos cunhado a expressão ‘sonho da casa própria’ a que a mídia se refere constantemente sem a mínima implicação com a palavra. Como se falar ou escrever não passasse de um encadeamento mecânico de peças, um ajuntamento com certa arbitrariedade de pedras e tijolos, sem nenhuma auto-implicação.
Por que ‘sonho da casa própria’, para um abrigo legitimado desde a época das cavernas, num país reconhecido por sua imensidão?
Pode-se ir muito além do espaço mais generoso dedicado a essa escavação como sugere essa pequena amostra. Mas com isso ao menos chegamos à questão que interessa mais especificamente: a boa reportagem de Renata Cafardo publicada na edição dominical de O Estado de S.Paulo (19/6, pág. A20) sobre a defenestração de professores com título de doutor em universidades particulares.
Para ter uma dimensão desta frustração mais recente é preciso recuar um pouco na história da universidade e da produção de ciência no Brasil.
Comecemos por 1808, quando, por puro acidente napoleônico, a corte portuguesa mudou-se às pressas para o Brasil, com D. João VI à frente e D. Maria I ‘A louca’, sua mãe, dizendo disparates que condiziam mais com a condição da viagem que certa formalidade cortesã queria representar.
A rainha, talvez valha a pena lembrar, confirmou a pena de Tiradentes, enforcado e esquartejado para servir de exemplo aos que alimentavam restrições ao saque a que, já naquela época, o Brasil estava exposto.
Com o desembarque da corte e o confisco das residências em benefício dos recém-chegados, começou alguma pesquisa científica e a publicação de livros e jornais, antes proibidos por força policial.
As pesquisas foram, desde o início, pontuais: a solução de uma ponte, a abertura de uma estrada ou de uma escola de minas para dar mais eficiência à exploração dos recursos naturais. Mesmo as publicações vieram em segundo plano, usando tempo ocioso da Imprensa Régia, originalmente ocupada em atender às necessidades da corte.
Produção relevante
Numa rápida viagem pelo tempo aportamos no século 20, mais especificamente em meados dos anos 1930, quando foi criada a Universidade de São Paulo (USP) numa vingança inteligente e conseqüente de uma elite paulista contra Getúlio Vargas.
Theodoro Ramos, entre outros, correu a Europa: França, Itália, Alemanha, especialmente, em busca de professores capazes de materializar o que se entende por universidade: um centro de excelência para a produção de idéias capazes de alimentar intelectualmente a sociedade. Sejam idéias de ciência, arte ou literatura, uma vez que todas elas integram a cultura de uma nação moderna e, por extensão, da humanidade.
Em 1976, numa iniciativa que partiu do governo militar e suas preocupações com a vertente tecnológica, foi deflagrada a formalização da pós-graduação no Brasil.
A USP, entre outras universidades, já fazia sua formação de mestres e doutores, mas a partir de 1976 essa formação submeteu-se a critérios universalizantes.
O que de início parecia um desafio difícil de ser levado à prática ganhou densidade, agregações críticas e outras contribuições, de forma que o núcleo de interesse original, centrado em preocupações tecnológicas (em muitos casos mera adaptação tecnológica, como aconteceu em áreas como produção de fertilizantes) acabou superado.
Neste ano de 2005, o Brasil deve formar em torno de 10 mil doutores, uma conquista que custa caro ao esforço de cada um e aos cofres públicos, especialmente nas universidades públicas.
Essa produção de doutores, pesquisadores aptos a iniciar novas áreas de pesquisa ou contribuir para a expansão e aprofundamento das já existentes, é maior que a de muitos países desenvolvidos.
A USP concentra a maior produção brasileira de doutores – e se essa produção fosse comparativamente estendida, a universidade superaria até mesmo índices dos Estados Unidos.
Estágio ideal para a fermentação dos problemas.
Fosso profundo
O que promete ser um encaminhamento básico e profundo para uma mudança de qualidade de vida social transforma-se, então, em problema, o que nos leva de volta à reportagem de Renata Cafardo, dando conta de que ter um título de doutor nas universidades privadas virou, pode-se dizer, um ‘mico’, por analogia com o comercial de uma empresa que produz tubos de PVC.
A repórter registra em seu texto o que vem sendo discutido nos corredores de universidades públicas e privadas: conquistar um título de doutor, em lugar de assegurar uma possibilidade de pesquisa, representa uma ameaça cada vez mais concreta de se levar um par de pés no traseiro e perder o emprego.
Como é possível que problemas desta natureza ocorram num país com a potencialidade do Brasil, em plena era de sociedade do conhecimento?
Aí está a dimensão da tragédia que, para ser minimamente compreendida – não aceita, evidentemente, mas repelida com todo vigor – exige uma abordagem de história das mentalidades. Afinal, um país subdesenvolvido, como continua sendo o Brasil, na avaliação de um filósofo da ciência como o argentino expatriado Mario Bunge é uma sociedade de mentalidade atrasada.
A investigação científica, a produção de conhecimento e a elaboração da cultura, ainda com respaldo de Bunge, é um dos caminhos mais promissores para superação do atraso e, portanto, do subdesenvolvimento.
Assim, ainda que muitos possam não estar de acordo, temos ao menos um ponto de abordagem e também uma primeira conclusão: a massificação, a privatização sem nenhum controle, a banalização mesmo da educação no Brasil, apontam, ao menos por esta perspectiva, mais para a manutenção do subdesenvolvimento que para a superação dessa limitação de inteligibilidade possível do mundo.
Ao demitir professores doutores em massa e substituí-los por mestres, que ganham menos, ainda que – por restrição de formação intelectual – não estejam à mesma altura de alimentar, não só a formação dos alunos, mas a garantia da alta qualidade da pesquisa nas áreas em que atuam, cavamos cada vez mais profundamente o fosso que nos separa das nações socialmente desenvolvidas. E este é um fato sem contestação racional.
Face cruel
As hostes tucanas – ao que tudo indica a sociedade esqueceu-se da metáfora do ‘apagão’ que o ex-presidente FHC disse de início desconhecer para depois responsabilizar um ministro, que era, evidentemente, um ministro dele, presidente – vêem em cada uma dessas oportunidades a possibilidade de se locupletarem, como detestáveis aves de rapina.
Para que não fique espaço útil às interpretações cínicas e repugnantes, certamente é preciso dizer que nenhum governo está livre de trapaças. Aos olhos anarquistas, por exemplo, céticos desde sempre com a máquina do Estado, neste tipo de organização social estão as origens de todos os males.
Mas não é preciso ser um anarquista para defender que os responsáveis por toda e qualquer manipulação indevida de riquezas e recursos sociais sejam responsabilizados, em qualquer tempo e lugar, por atos que são verdadeiramente de traição social. Muitas sociedades primitivas resolviam essas questões de forma mais simples e direta. A sofisticação das sociedades atuais (ao menos no Ocidente), com todas as conseqüências disso, evidentemente inviabiliza e coíbe esses métodos mais diretos. O que não significa que atos de pilhagem social devam permanecer impunes.
Renata Cafardo procurou universidades que demitiram professores doutores e os substituíram por mestres, ou simplesmente se dispuseram a recontratá-los por salários mais baixos, expondo a face mais cruel do empresariado de educação, onde até bicheiros conquistaram assentos com ares de respeitabilidade.
Moeda de troca
A máquina burocrática, lerda e submetida a restrições pelo poder capilarizante dos lobbies, até tomar uma atitude, se uma atitude de fato vier a ser tomada, não evitará prejuízos que são impossíveis de ser avaliados. Eles implicam em sofrimento e mutilação de auto-estima absolutamente desnecessários, remetendo-nos, a todo momento, à memória escravista subjacente a cada um desses atos.
Onde entra a mídia nesta história toda?
A resposta certamente é mais complexa que a cabível em poucos parágrafos. Mas pode ser sintetizada. Reportagens como a de Renata Cafardo, por exemplo, trazem para a sociedade as pressões, manipulações e patifarias de bastidores, o que é sempre saudável, ainda que obrigação elementar da imprensa.
O ambiente em que fermentam essas trapaças, no entanto, contam com o beneplácito da mídia, em boa parte já dominada por bispos de fama suspeita, blocos de poder, religiosos e laicos interessados em soluções corporativas em prejuízo do bem-estar social – ou do ‘bem público’, como preferem os filósofos.
Afinal, a concessão de veículos de comunicação social – estações de rádio e de TV – é uma das moedas de troca nas relações de poder que têm preservado interesses oligárquicos em detrimento do desenvolvimento social. Numa situação em que poucos ganham e a maioria perde.
E paga.