Uma única vez, em todo o tempo em que escrevo para o Observatório da Imprensa, tive um artigo recusado pelo editor – recusa corretíssima, aliás. É que eu havia escrito um texto sobre o absurdo de multas aplicadas a motoristas no Rio de Janeiro a partir de um fato ocorrido comigo. Eu estacionara o carro num local controlado por guardadores oficiais, efetuei o pagamento regulamentar, mas acabei recebendo uma notificação de multa por ‘estacionamento irregular’. Não adiantou recorrer, a suposta infração permaneceu.
O OI procedeu corretamente em seu juízo editorial porque sua finalidade é observar a imprensa, e não a sociedade. Eu havia agido como um cidadão indignado com uma arbitrariedade (recorrente em relatos de amigos e conhecidos) e tentei fazer as vezes do repórter ausente. Em jornal, numa carta do leitor ou numa coluna, o texto poderia passar. Não no Observatório da Imprensa, claro: junto ao Luiz Egypto, escriba não pode se arvorar a faraó…
Agora, entretanto, anos depois, O Globo faz uma campanha contra os abusos das Juntas Administrativas de Recursos de Infração (Jari). Um cidadão recebe notificação de multa por carro que não lhe pertence e recorre, sem sucesso. Outro teria estacionado ‘dentro do túnel’ na Rua Abade Ramos (Jardim Botânico), onde simplesmente não existe nenhum túnel, sem sucesso. Contam-se aos milhares os absurdos.
Uma anomalia estrutural
Não é uma questão menor. É proverbial o arbítrio com que o contribuinte é tratado pelo Estado, seja qual for o nível – federal, estadual ou municipal. Antes do computador, não raro se tinha que ‘mendigar’ em filas de repartições por uma segunda via de uma cobrança qualquer, fosse imposto predial ou taxa de bombeiro. Às vezes, era (na verdade, ainda é) a dificuldade para que o monstro burocrático registrasse o endereço correto do imóvel para onde o sujeito tinha, havia anos, se mudado. O cidadão que anda ‘na linha’ (dentro da plena legalidade como contribuinte) corre o risco de ser atropelado pelo trem das arbitrariedades.
Se estivesse sob a égide um jornalismo cívico, de análise em profundidade do fato social, a suíte de matérias de O Globo poderia ilustrar o leitor com um retrospecto histórico das relações entre o cidadão e o Estado no Brasil, mostrando como, desde a era colonial, nos cantos mais remotos do país, o aspirante à cidadania via os prepostos do poder, principalmente os coletores de impostos, como representantes daquela ‘monstruosidade’ intitulada burocracia estatal.
Esse episódio das Jaris cariocas é apenas a singularização de uma anomalia estrutural. Sob a justa motivação de controle dos excessos cometidos por motoristas e de maior organização do trânsito numa cidade congestionada por automóveis, constitui-se, em parceria com a prefeitura (os guardas municipais são os fiscais das infrações) uma indústria (terceirizada) de arrecadação de multas, juntamente com um simulacro de apreciação dos recursos, um direito assegurado por lei aos cidadãos.
Providência à superfície do arbítrio
O simulacro são as Jaris, onde atuam funcionários aposentados, recrutados pela esfera privada, para pretensamente avaliar os recursos. É evidente, porém, já que se trata realmente de um faz-de-conta, que não está em questão nenhum julgamento correto, e sim a legitimação do arbítrio. Cabe ao Estado o poder de punir, à esfera privada, enriquecer – e ninguém venha atrapalhar com argumentos de direitos e cidadania. Confrontada ao vasto panorama dos problemas nacionais, a questão é aparentemente pequena, municipal demais, mas na realidade o mesmo ‘holograma’ da iniqüidade e do abuso, apenas tomado em uma de suas partes. O antropólogo Roberto da Matta costuma bater numa bigorna semelhante em sua coluna semanal em O Globo.
É um tipo de análise que, no caso em pauta, poderia ser complementada com os conceitos psicanalíticos de ‘seio bom’ e ‘seio mau’. A mamada nas tetas do Estado é boa para aqueles destinados, por uma razão ou outra, a fazer fortuna, graças às benesses outorgadas pelos governantes da vez; o ‘seio’ é mau para o cidadão desprotegido frente aos impostos escorchantes e aos abusos que se cometem à sombra de supostas boas intenções, quase sempre louvadas pela imprensa. Se há motoristas irresponsáveis, se o trânsito é caótico, a ocasião é boa para punir a cidadania com um todo, recusando-lhe a plenitude dos direitos, aproveitando para formar futuros contribuintes… de campanhas eleitorais.
Como sempre acontece, quando um jornal de grande público investe fortemente numa campanha, alguma providência maquiladora vem à superfície do arbítrio. Ao que consta, foram afastados dois ou três dos supostos juízes. É provável que o jornal dê como vitoriosa a sua diatribe. Mas se não se mostra claramente ao público como a escandalosa infração do Estado pode superpor-se à infração rotineira por parte do cidadão, jornalismo cívico continua mal servido.
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Jornalista, escritor e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro