Cena que se incorporou ao meu cotidiano: enquanto esperava a certidão que pedi ao cartório, peguei o exemplar daquela sexta-feira, 24 de junho, do Diário da Justiça. Leitura atenta, que se tornou ainda mais sacrificada com a infeliz de decisão da direção do Tribunal de Justiça do Estado de comprimir as linhas e reduzir o tamanho das letras da publicação, para economizar os custos da edição.
Quando chego à resenha da 4ª Vara Cível de Belém tomo um susto: fui condenado na ação ordinária de indenização por danos morais proposta contra mim pelo empreiteiro Cecílio do Rego Almeida, dono da Construtora C. R. Almeida. A sentença, datada do dia 17, foi dada por um juiz que, para mim, era um estranho à 4ª Vara.
Meu cérebro se recusava a processar aquela informação. Voltei 40 anos na vida. A sensação que me invadia naquela sala do cartório Vale Chermont era a mesma de quando li Metamorfose, de Franz Kafka. Gregor Samsa só percebeu que se transformara em barata (ou inseto, segundo tradução menos específica) quando acordou. Saíra do sono e entrara no pesadelo. Começava o surrealismo. Para Samsa, na primeira linha da fantástica novela do autor tcheco. Para mim, naquele final de sentença. Mais uma vez, o Judiciário paraense me aprontava uma surpresa de mau gosto.
O último dia
Desde 1992, quando foi ajuizada a primeira de 32 ações que iriam me atazanar nos autos e nos corredores da Justiça, mais kafkianamente do que podia imaginar o próprio Kafka, eu me acostumei às más surpresas. Elas se constituíram em regra maciça, deixando pouco espaço para minúsculas exceções. A começar pelo fato de que nenhum dos meus algozes, baseando-se na famigerada Lei de Imprensa, de 1967, exerceu o direito de resposta. Decidiram me processar sem contestar publicamente os meus escritos, supostamente ofensivos.
Com a primeira condenação e os recebimentos automáticos de todas as ações propostas, sem que nenhuma vez minhas preliminares pelo indeferimento de plano da inicial tenham sido recepcionadas pelos julgadores, os que querem me calar entenderam o recado: o caminho era mesmo através do Judiciário, não através de prestação de contas à opinião pública. Os autos, guardados em cartório, impulsionados apenas pelas partes, podiam servir-me de esquife adequado, ou pelo menos de mordaça.
Mesmo com todo esse contexto, forjado ao longo de 12 anos de processos em moto contínuo, aquela decisão que me chegava através do Diário da Justiça não deixava de ser extravagante, insólita, alucinada. Mal recebi minha certidão, que seria anexada a mais um processo do qual devia me defender, corri para o fórum. Depois de três horas de investigação, perquirindo, assuntando e juntando documentos, saí do prédio da Justiça de Belém, no fim do expediente da semana, com a alma angustiada e a revolta intumescida. A história que apurei era aberrante.
O juiz Amílcar Roberto Bezerra Guimarães, titular da 1ª Vara Cível, foi designado para responder pela 4ª Vara, em substituição à juíza Luzia do Socorro Silva dos Santos. A magistrada queria se ausentar de Belém para participar de um encontro acadêmico no Rio de Janeiro. Para isso, pediu licença ao tribunal. Equivocadamente, porém, a portaria publicada no dia 15 a designou para acumular a 3ª Vara, sem prejuízo de continuar a responder pela 4ª. Nesse mesmo dia, o presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Milton Nobre, assinou portaria designando o juiz Amílcar Guimarães para substituir Luzia do Socorro. O ato, porém, só entrou em vigor no dia seguinte, com sua publicação no Diário da Justiça. Guimarães responderia pela Vara somente até o dia 17.
Nesse mesmo dia, pediu os autos do processo do dono da C. R. Almeida e os levou para sua casa. Devolveu-os ao cartório da 4ª Vara somente no dia 21, mas a sentença, me condenando a indenizar o autor da ação, foi datada do dia 17, que era o último dia de Guimarães como substituto de Luzia do Socorro.
‘Matéria ofensiva’
Os autos do processo principal têm quase 400 páginas. Há dois apensos, de mais de 100 páginas. Quando respondia pela Vara, o juiz César Augusto Puty Fernandes decidiu, em fevereiro deste ano, indeferir a produção de provas testemunhais e documentais que requeri e julgar antecipadamente a lide. Recorri dessa decisão através de agravo de instrumento, submetido à instância superior. Esses agravos ainda não haviam retornado ao juízo de origem quando o juiz Amílcar Guimarães, no exercício da 4ª Vara, em tese, por três dias, mas, na prática, por apenas um, ignorando-os, lavrou sua sentença me condenando.
Mesmo tendo levado os autos para casa, no fim de semana, não se preocupou com a boa ordem formal do processo. As últimas páginas, por exemplo, ainda não estavam numeradas. Entre as peças não numeradas estavam as informações prestadas pela juíza Luzia do Socorro ao desembargador Enivaldo da Gama Ferreira, relator do agravo, que o juiz Guimarães preferiu não levar em consideração.
Ele me condenou a pagar indenização no valor de 8 mil reais. Mas o valor será ainda acrescido de correção monetária pelo INPC da Fundação IBGE a partir da data da publicação da matéria considerada ofensiva, que o juiz diz ser de 2000, juros de mora de 6% ao ano a partir da citação, mais 15% de honorários advocatícios sobre o valor da condenação. Autorizou C. R. Almeida a dar publicidade à decisão, embora não me impondo a publicação.
‘Fatos incontroversos’
A C. R. Almeida é apontada, no Livro Branco da Grilagem no Brasil, editado em 2002 pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, como a responsável pela mais grave tentativa de apropriação indébita de terras públicas no país. A empresa, uma das maiores empreiteiras brasileiras, com sede no Paraná, se diz proprietária de uma área de terras que pode ter de cinco a sete milhões de hectares, no vale do Xingu, no Pará. Essa área, que integra a chamada ‘Terra do Meio’, é cobiçada por ter a maior concentração de mogno, a árvore mais valiosa da Amazônia e seu produto de maior cotação (cada metro cúbico pode chegar a valer 1.800 dólares).
Uma das matérias publicadas pelo Jornal Pessoal, quinzenário que edito em Belém há quase 18 anos, denunciou essa grilagem, confirmada por todas as instâncias do poder público, que movem ações para anular os registros e transcrições imobiliárias dessa falsa propriedade junto ao cartório de Altamira. A base dessas ações é que jamais o Estado expediu um título sobre essas terras. A cadeia dominial em poder da C. R. Almeida tem como origem um ‘título hábil’, que ninguém jamais apresentou pelo fato simples e categórico de que inexiste. Trata-se de uma imensa grilagem sem título, enquanto a outra grilagem famosa, a de Carlos Medeiros, não tem grileiro (o personagem é fictício, um ‘laranja’ inventado por advogados e corretores imobiliários).
Na sua sentença, o juiz Amílcar Guimarães afirma que toda a prova do dano moral perpetrado pela reportagem contra Cecílio do Rego Almeida está contida na própria matéria do Jornal Pessoal: ‘O que ali consta é suficiente para que este juízo, ou o Tribunal no julgamento de eventual recurso decida se houve ou não danos à moral do autor’, escreveu o juiz.
Para ele, ‘os fatos são incontroversos’ e a causa ‘é simples’, apesar do contraditório desenvolvido pelas partes nos autos, com argumentações, documentos e provas juntados, formando um volumoso processo, com dois apensos. Por considerar a ‘simplicidade da lide’, o juiz admite ter sido ‘obrigado a apreciar preliminares sem sentido e agora o insosso argumento da falta de nexo de causalidade e de conduta culposa ou dolosa’. Tanto as preliminares quanto o argumento são da defesa. Nenhuma objeção ao autor da ação.
‘Dor moral’
O magistrado declara que as teses foram levantadas nos autos ‘apenas para torturar o julgador obrigando-o a um infrutífero trabalho braçal’. Para ele, ‘as duas únicas questões relevantes para o julgamento da lide’ são: ‘A matéria publicada pelo jornalista Lúcio Flávio Pinto, no seu ‘Jornal Pessoal’, tem potencial ofensivo para lesar a moral de um homem médio? A liberdade de imprensa, direito constitucional, não lhe assegura publicar suas reportagens com os exatos termos que publicou?’.
Sobre esses dois temas, o juiz garante que ‘poderia escrever um livro, talvez uma biblioteca inteira’. Mas escreveu logo uma sentença, na qual conclui que a matéria do Jornal Pessoal era ‘uma narrativa jornalística sem qualquer potencial ofensivo, exceto quando o jornalista sai da linha editorial com que se conduzia e afirma: ‘Cecílio do rego Almeida é apenas o mais audacioso, esperto e articulado desses piratas fundiários’’.
Nesse ponto, segundo Guimarães, o jornalista ‘não está informando seus leitores (direito constitucional). Está apenas ofendendo o autor com uma afirmação grosseira, sem qualquer conteúdo jornalístico e que nada de útil acrescentou à matéria publicada’.
Esse trecho, segundo a sentença, provocou o dano, que é presumido. ‘E nem poderia ser diferente’, argumenta o juiz, ‘uma vez que a dor moral ocorre no plano interior do indivíduo sendo impossível a sua constatação’. Por isso, considerou ‘irrecusável’ a ‘reparação pelo dano moral’ sofrido pelo empresário Cecílio do Rego Almeida.
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)