Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Infiltrados, roubos e furtos, mosca azul

O coordenador da sucursal do Rio de Janeiro da Folha de S. Paulo, Sergio Costa, publicou na segunda-feira um texto chamado “Infiltrados”. Diz, a certa altura:


Se antes da ofensiva das milícias já estava difícil identificar os limites entre o banditismo e a ação de certos policiais e políticos, agora ficou quase impossível. O crime até hoje não esclarecido de um policial que chefiava a milícia mais antiga do Rio, na favela de Rio das Pedras, é emblemático. A viúva acusou um vereador. O vereador foi cabo eleitoral para deputado federal do filho do prefeito -um entusiasta das ações das milícias. O assassinado, por sua vez, fez campanha em seus domínios para o ex-secretário de Segurança e foi assessor do chefe da Polícia Civil no fim do governo anterior. Essas ligações nada provam. O que impressiona é a desenvoltura com que certos personagens envolvidos até o pescoço com o submundo transitam por gabinetes de todos os níveis”.


Até hoje, quarta-feira, nenhuma repercussão.


Costa deu entrevista ontem (20/3) ao Observatório da Imprensa. Essa consciência aguda da ligação entre o crime e quem deveria combatê-lo – feitas as indispensáveis ressalvas quanto à existência de bons e maus policiais – aparece condensada numa piada que o veterano jornalista de Polícia Luarlindo Ernesto criou, lembrada pelo coordenador da sucursal da Folha: “Não tem nome mais adequado para uma delegacia do que Divisão… de Roubos e Furtos”. A relação de polícia com política fica evidente na facilidade com que autoridades arranjam tempo para dar entrevistas a emissoras de televisão. Mídia é exposição, meio caminho andado para se apresentar aos eleitores.


Eis a entrevista.


Criminalidade violenta deveria ser exceção, não rotina


A que o senhor atribui as deficiências da cobertura sobre segurança pública no Rio, que deixa na sombra tantos aspectos importantes?


Sergio Costa – Fazemos uma discussão na Folha, com o próprio ombudsman, Marcelo Beraba: temos tentado descobrir uma maneira de cobrir segurança pública, não cobrir “violência”. Existe o noticiário, faits divers, mas me parece que isso está assumindo uma proporção muito mais ampla e a imprensa não tem conseguido dar respostas que contribuam para o debate e a solução dos problemas. Os governos não encaram de frente o problema da segurança pública, e a imprensa não tem descoberto parâmetros para fazer uma cobertura crítica e propositiva. Ao contrário do que aconteceu com economia – os jornalistas e os jornais se prepararam para cobrir o tema –, acho que essa parte ficou meio largada nas editorias de polícia, cobrindo-se o factual. Vejo hoje uma cobertura muito menos de segurança e muito mais de fatos policiais, que acaba pautando as ações das autoridades. Por exemplo, tem um crime como o que aconteceu ontem (19/3) no Rio. Um francês foi assassinado na Via Dutra, numa tentativa de roubo de um celular dentro de um carro quando eles pararam para trocar pneu. A imprensa inteira, talvez até do mundo, pode cair em cima desse fato, e as autoridades dão uma resposta. Agora, todo o panorama que cria essa situação acaba ficando em segundo plano.


Um dos resultados mais chocantes, digamos assim, dos debates que o Observatório realizou no Rio de Janeiro sobre violência, e principalmente do segundo (em 12 de março, ainda não publicado), foi que os participantes, com riqueza de evidências, apontam na seguinte direção: as autoridades são uma parte muito grande do problema. Porque não existe nenhuma atividade criminosa, principalmente as mais pesadas, que envolvem interesses mais poderosos, que não tenha participação da Polícia. Isso não é nenhuma novidade. Vou colocar na rede esta semana, se correr tudo bem, uma entrevista feita com Hélio Bicudo, sobre o livro de memórias dele (Minhas memórias), onde está escrito, a respeito do Esquadrão da Morte, em 1970: “Tratava-se de um esquema que favorecia determinadas quadrilhas de drogas em detrimento de outras, assegurava redes de prostituição e adotava o sistema mafioso da venda de proteção”. No debate de 12 de março a mesma coisa foi dita. É algo que tem quase quarenta anos. E, desse ponto de vista, me parece que quem pauta a mídia são as autoridades, é a Polícia. A mídia é totalmente dependente das autoridades.


S.C. – E vice-versa.


Divisão… de roubos e furtos


Mas isso é um jogo entre as duas partes…


S.C. – Tem uma piada antiga do Luarlindo Ernesto, repórter de Polícia há mais de trinta anos, que diz o seguinte: “Não tem nome mais adequado para uma delegacia do que Divisão… de Roubos e Furtos” (risos). Divisão aí, entenda-se, no sentido da má partilha. A piada expressa um pouco a sensação que a gente tem aqui. É óbvio que tem que ser feita a ressalva de que existem maus policiais e bons policiais, mas em algum momento tem uma zona que ainda não está muito bem esclarecida, uma zona de interseção, uma certa promiscuidade. Se você imaginar que um policial militar iniciante aqui no Rio tem um salário de, digamos, mil reais, e cada vez que se abre prova para concurso dá fila na porta para conseguir aquela carteira – lógico, fazemos também a ressalva da crise do país, do desemprego –, obviamente há alguns outros interesses em torno da possibilidade de se ter uma carteira e o porte de uma arma. Se você vai a alguns batalhões aqui e fica na porta, ou entra no estacionamento… com mil reais não dá para se sair de lá de dentro com um Vectra, ou coisa parecida.


No primeiro debate sobre as raízes da violência, o coronel da reserva da PM Jorge da Silva relata que, quando era subcomandante da PM do Rio de Janeiro, determinou que os comandantes de batalhões tomassem conhecimento dos chamados sinais ostensivos de riqueza de seus subordinados. Não mudou nada. [Clique aqui para ler o debate.]


S.C. – Tem outra questão. A demanda de trabalho (da Polícia) é muito grande, e como não se investiga praticamente nada, o noticiário vai sendo substituído pelos fatos novos e os antigos vão sendo esquecidos. Os leitores reclamam: Que fim levou o caso Fulano de Tal? Daqui a pouco esse caso do menino João Hélio, que foi arrastado, também vai desaparecer, vai ficar esquecido.


Correspondentes de guerra


O que o senhor sugeriria para melhorar a cobertura, esclarecer mais, levando-se em conta que no caso da Folha, se trata de uma sucursal.


S.C. – O trabalho da sucursal numa cidade como o Rio de Janeiro, que sempre vive um quadro de insegurança grave, é feito um pouco como o de um correspondente de guerra. Tentamos juntar um pouco os acontecimentos e dar uma explicação mais contextualizada. Quando eu digo que a imprensa ainda não tem muito subsídio, uma base para fazer uma cobertura de segurança pública, é preciso acrescentar: quem estuda esse tipo de situação? Onde estão os exemplos bem-sucedidos? Trazer um pouco essa discussão além da cobertura do factual é o que está faltando para que possamos ter como cobrar das autoridades uma atuação mais concreta. Se você pergunta para o governador o que está acontecendo e ele responde em tese, filosofando sobre a situação do menor, ou do Código Penal, não é uma resposta para o que a sociedade está precisando. Ela está querendo, mais do que discussões filosóficas ou respostas policiais, uma política de segurança consistente, que possa transformar esses fatos que a gente hoje vê como rotina em exceção, e não o contrário. O crime tem que deixar de ser notícia rotineira.


A mosca azul da política


Que outros fatores concorrem para que perdurem as deficiências atuais da cobertura jornalística?


S.C. – Parte da nossa deficiência na cobertura dessa área de segurança vem de uma dependência muito grande. Você não tem hoje muitos repórteres investigativos, com todo tipo de fonte. Acho que tem muita dependência, principalmente dos grandes meios, como a televisão, das fontes oficiais. Qualquer coisa que aconteça aqui no Rio, por exemplo, imediatamente você tem um secretário de Segurança disponível, um chefe de Polícia, um comandante da PM para dar entrevista na televisão. E isso dá uma visibilidade muito grande. Conseqüentemente, a mosquinha da política acaba encostando ali e tendo sua participação.