A polêmica em torno da entrevista de Suzane von Richthofen ao Fantástico parece caminhar às vezes num plano algo abstrato (ver tópico ‘Nassif, Kamel e a ética da mídia‘ do blog Verbo Solto, de Luiz Weis). Penso que se perde de vista o ponto principal: a reportagem deveria ter sido derrubada. Não deveria ter sido exibida.
O Fantástico passou nove meses pedindo a entrevista. Foi o que disse o locutor, em off, no segundo bloco (o primeiro foi uma apresentação do caso) da reportagem, em 9 de abril:
“Há nove meses, o Fantástico tem conversado com Barni [o advogado-tutor] sobre a possibilidade de entrevistá-la.
Neste período, houve uma conversa telefônica e dois encontros com Suzane, sem câmeras”.
A própria Globo preparou o espírito dos telespectadores nesse segundo bloco:
“A dois meses do julgamento, Suzane von Richthofen, acusada de ter planejado a morte dos pais, resolve falar. Por que será?” [Grifos meus.]
“O que será que tem a dizer, hoje”, insistiu o Fantástico, “a menina bem-nascida que é acusada de ter participado da morte dos pais, em outubro de 2002, em São Paulo? O Fantástico procurou Suzane von Richthofen. E ela, que deve ir a julgamento dentro de dois meses, resolveu quebrar o longo silêncio.”
E reiterou:
“Por que ela resolveu falar só agora? Como ela se comportou? Como foi esse encontro? O que ela tentou dizer? O que ela tentou esconder? E o que os advogados esperavam dessa entrevista?’
O texto da reportagem pode ser lido aqui.
A história poderia ser contada assim por quem, como o autor destas linhas, não conhece pormenores: a Globo passou meses e meses negociando. Quando foi conveniente para a defesa, os advogados liberaram a entrevista. A Globo percebeu que se tratava de uma farsa, teve até uma evidência disso (as gravações das instruções dadas pelos advogados), mas foi em frente. E conseguiu criar um fato novo: influenciar um promotor a pedir a revogação da decisão que permitia a Suzane esperar em liberdade o julgamento.
A invasão do Judiciário pela televisão na Argentina foi descrita por Beatriz Sarlo no livro Paisagens Imaginárias (“A democracia midiática e seus limites”):
“A esfera midiática introduziu inúmeras modificações na apresentação dos problemas que magnetizam a sociedade, mas o que fez com maior originalidade foi o rearranjo de fronteiras [grifo de Sarlo] entre o que é público e o que é privado. Como conseqüência disso, alterou-se a relação entre os fatos que afetam a todos os cidadãos e aqueles cuja projeção diz respeito apenas aos que estão privada e diretamente envolvidos em um conflito. Emerge uma solidariedade do privado em uma sociedade que está perdendo critérios públicos de solidariedade” (no caso, caberia trocar “solidariedade” por “indignação”).
Dois textos publicados no site Consultor Jurídico criticam a Rede Globo. Um é do advogado criminalista Paulo Sérgio Leite Fernandes e outro do jornalista Maurício Cardoso, diretor de Redação da revista Consultor Jurídico.
Ambos comparam o caso de Suzane com o do caseiro Francenildo Costa. A revista Época foi cúmplice da quebra do sigilo bancário do caseiro; foi mais, foi o agente da quebra do sigilo, porque os dados poderiam ter chegado ao conhecimento do ministro Antonio Palocci e do presidente da Caixa, Jorge Matoso, sem que isso representasse alguma infração, como anota Cardoso. Naquele episódio, a TV Globo e o jornal O Globo, da mesma empresa, recusaram-se a chancelar a agressão aos direitos do caseiro. Agora, foi a TV Globo que escorregou.
Diz o criminalista Paulo Sérgio Leite Fernandes:
“A rede de televisão mencionada fritou a jovem Suzane Richthofen, credulamente oferecida, ovelha desnutrida, à solércia com que a espionaram, nos intervalos da entrevista, como se fosse uma partícipe da série Big Brother. Ali, o microfone fica ligado 24 horas por dia.
A moça Suzane, artefato grudado no corpo, não soube entender que os próprios entrevistadores mantinham a gravação permanentemente atuante. Houve o desastre, demonstrando que a confiabilidade dos jornalistas era nenhuma, embora tivesse havido contato predeterminado entre todos, pois a vida daquela moça foi acompanhada durante mais de um dia”.
Clique aqui para ler o texto completo do criminalista Paulo Sérgio Leite Fernandes.
Maurício Cardoso aponta a publicação de uma falsidade:
“Nas primeiras aulas de jornalismo, ensina-se que nem tudo que se apura vai para o ar ou se publica. Se a informação é falsa, ela não merece ser publicada. Na medida em que se publica uma falsidade, quem o faz assume a responsabilidade pela falsidade, participa da farsa, mesmo que seja para denunciá-la. Então por que publicar a falsa lágrima da mulher que matou os pais?”
Clique aqui para ler o texto completo de Maurício Cardoso, reproduzido neste Observatório da Imprensa.
Em tempo: a Veja também publicou a farsa, com direito a capa. Sabendo que se tratava de uma farsa:
‘Fala baixo e com voz infantil. Ao responder às perguntas, escondia o rosto atrás dos cabelos, mirava o chão e lançava olhadelas indagativas para seus advogados. Claramente foi instruída por eles para fazer o tipo frágil e desassistida‘.