Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O relógio e o calendário

Eric Alterman, o repórter de mídia da revista semanal New Yorker, escreveu um dos melhores artigos concebíveis sobre a disputa entre jornalismo impresso e jornalismo online nos Estados Unidos – e olhe que o que o assunto já rendeu não está escrito, como se diz. Na linha das matérias de fundo da revista, o artigo é grande em sentido literal também: tem 6.600 palavras, ou 10 telas em Times New Roman 12.


 


Chama-se “Out of print” (fora de circulação, ou esgotado), com o sub-título esperto “The death and life of the American newspaper” (a morte e a vida do jornal americano). Pode ser lido em http://www.newyorker.com/reporting/2008/03/31/080331fa_fact_alterman .


 


Antes de ir às idéias – as dele e as que ele inspira -, os números da crise do jornalismo-diário-como-o-conhecemos:


 


As editoras de jornais cujas ações são negociadas em bolsa perderam 42% do seu valor de mercado nos últimos três anos.


 


O patrimônio acionário da New York Times Company diminuiu 54% desde o fim de 2004.


 


A contar de 1990, 25% das vagas na imprensa diária americana foram fechadas.


 


O tempo médio gasto na leitura dos jornais nos Estados Unidos não chega a 15 horas por mês. (Portanto, nem 30 minutos por dia.)


 


Oito em cada dez americanos entre 18 e 34 anos nem batem os olhos num jornal.


 


O leitor típico tem 55 anos – e tende a ficar ainda mais velho.


 


Quase 40% das pessoas com menos de 35 anos ouvidas numa pesquisa disseram que esperam usar a internet no futuro para se informar. Só 8% falaram em se informar pelos jornais.


 


Menos de 20% dos americanos acham que se pode acreditar em todos ou na maioria dos relatos da mídia.


 


Muitíssimos mais americanos acreditam em discos voadores do que na imparcialidade da imprensa.


 


O site jornalístico progressista Huffington Post (sobre o qual Alterman escreve extensamente) emprega em tempo integral 46 pessoas (“muitas das quais mal chegaram à idade de poder alugar um carro”), publica textos de mais de 1.800 blogueiros (sem contar os famosos), e é acessado por 11 milhões de “visitantes únicos” por mês. Ultimamente, só perde para as versões online de oito jornais.


 


O New York Times emprega mais de 1.200 pessoas em atividades jornalísticas. O Washington Post e o Los Angeles Times, entre 800 e 900.


 


Só a sucursal de Bagdá custa ao Times US$ 3 milhões por ano.


 


Aos argumentos – do autor e do leitor.


 


Uma das causas da crise da mídia impressa – não necessariamente a primeira, muito menos desvinculada de outras, apenas a mais óbvia ­– é o advento da internet, que faz parecer o jornal diário um anacronismo, pesado, lento e incapaz de sacar com rapidez as demandas (em mutação) do público.


 


A internet – mas, de novo, não só ela – também expôs o que os críticos da grande imprensa convencional consideram o seu elitismo, arrogância, parcialidade, desdém pelo homem comum.


 


O jornalista de nariz empinado não está nem aí para onde o calo do leitor aperta, com perdão da dupla metáfora anatômica. Ou, dito de outro modo, por que um jornalista, para onde quer que aponte o seu nariz, saberia necessariamente mais do que o público qual é o interesse público?


 


De todo modo, o que mais se lê na internet, em matéria de jornalismo, são – em toda parte, ao que se saiba – as edições online de jornais, revistas, informativos de rádio e TV.


 


E não se perca de vista: nos Estados Unidos foi a direita quem primeiro saiu atirando essas acusações aos jornalões. O elitismo, a arrogância, a parcialidade, o desdém pelo homem comum seriam indissociáveis do “viés liberal” (progressista) dos que, controlando o noticiário e as páginas de opinião, mas sendo uma minoria ideológica, impingiam aos americanos, de cima para baixo, as suas noções do que é notícia e do que é bom para o país.


 


Um dos principais alvos da Contra-Revolução Conservadora nos Estados Unidos – que começou com Reagan e chegou ao auge com Bush – era a desmoralização dos jornais como o New York Times, Washington Post, Los Angeles Times. Porque, lembra Alterman, eles de fato pregavam a necessidade de um governo forte e ativo e a responsabilidade moral de garantir a ampliação dos direitos das mulheres e das minorias étnicas e raciais.


 


Quando a internet ainda engatinhava, a direita americana já gastava incontáveis milhões de dólares para convencer o povo de que a imprensa não prestava.


 


Esse clima de opinião explica em parte – quem sabe em boa parte – como se originou a erosão da credibilidade da velha mídia americana. E tanto ela ficou acuada que acabou tendo o papel abjeto de papaguear as mentiras do bushismo para justificar a guerra ao Iraque. O que fechou o círculo vicioso: também a parcela progressista da sociedade passou a acusar os jornalões – com carradas de razão – de facciosismo, dessa vez como correias de transmissão da propaganda oficial.


 


É o contexto em que vai às núvens a popularidade dos sites jornalísticos e a própria idéia – acolhida acriticamente por tanta gente boa – do “jornalismo-cidadão”.


 


E é o contexto em que, em 2005, Arianna Huffington, uma milionária da Califórnia, divorciada de um político republicano e tendo mudado de lado, lançou com mais duas pessoas o Huffington Post, agregando notícias políticas e fofocas e criando um blogão grupal com colaboradores escolhidos da “alarmante coleção de amigos e conhecidos” de Arianna, segundo Alterman.


 


Jonah Peretti, um dos criadores do que passou a ser chamado ‘HuffPost”, diz que o site é “um empreendimento compartilhado entre os que o produzem e os que o consomem” – uma espécie de Wikipédia jornalística, portanto. Ou, quem sabe, Wikinews.


 


O pessoal do HuffPost acha que a sua forma de fazer jornalismo está transformando o conceito de notícia do mesmo modo que a CNN o transformou há 30 anos.


 


Pode ser. Mas um dos seus ingredientes essenciais – a participação dos consumidores de que fala Peretti – “muitas vezes lembra os graffiti de um banheiro público”, observa Alterman. E “muitas das notas dos blogueiros que o site publica não merecem o esforço nem mesmo de um clique de mouse”, fulmina.


 


O pior, como na esmagadora maioria dos sites do gênero, não são os insultos e as idéias malpassadas dos leitores que escrevem duas vezes antes de pensar. São as informações falsas que vão ao ar sem passar pelo pente fino dos editores.


 


No caso do HuffPost o caso mais famoso foi o da antropofagia em Nova Orleans depois da devastação causada pelo furacão Katrina. Um comentarista mandou ver, sem checar evidentemente, a história de que vítimas da tragédia “comiam cadáveres para sobreviver”.


 


A própria Arianna Huffington entrou no circuito para apagar a enormidade – e fez um auê em cima da rapidez da correção. Foi rápida, sim, mas não o bastante para impedir que a assombrosa invencionice fosse reproduzida a torto e a direito na internet.


 


Comparando: naturalmente, um jornal leva pelo menos 24 horas para corrigir no papel uma barbeiragem – quando quer fazê-lo, mas essa é outra história. Só que, se o erro não for copiado na internet, se espalhará mais vagarosamente.


 


O problema do erro – de boa ou má-fé, não vem ao caso neste instante – é o problema essencial. Com todos os seus defeitos, que não são poucos, nem devem ser minimizados, e a par todos os outros fatores, um jornal sério tende a errar menos do que um site ou um blog que hipoteticamente divulgue o mesmo número de informaçôes em igual período.


 


Pela simples, ou não tão simples razão de que o processo editorial na imprensa-como-a-conhecemos impõe a repórteres e editores – profissionais, portanto – a servidão de checar as histórias a serem publicadas. Sim, essa checagem já não é o que era desde que as redações passaram a ter menos jornalistas trabalhando mais.


 


Ainda assim, o princípio da verificação prévia está entranhado na técnica do ofício. Ao passo que na web esse controle de qualidade é feito, se é feito, quando Inês é morta – e depende muitas vezes de que um leitor, mais bem informado sobre o assunto em questão, despache um alerta restabelecendo a verdade.


 


Para ficar no HuffPost, um senhor site. A maioria dos textos que ali se podem ler em dado momento não passaram pelo crivo de nenhum editor. Este só consuma entrar em campo quando um leitor adverte que tal ou qual colaboração é mentirosa, difamatória ou ofensiva.


 


Alterman:


 



“A vasta maioria dos repórteres e editores dedicou anos, se não décadas, a entender as questões de que tratam as suas matérias.”


 


“Reportagens de verdade, especialmente do gênero investigativo, são caras. Agregação [de textos] e opinião são baratas.”


 


Há iniciativas para profissionalizar o jornalismo na internet. Uma delas é a criação de fundos para financiar reportagens feitas por jornalistas tarimbados para este ou aquele site.


 


Vai demorar, aqui um pouco mais, ali um pouco menos, mas os dois modelos jornalísticos tendem a convergir. É por isso que o título do excelente artigo de Alterman fala em “a morte e a vida” do jornal impresso e não na sua “vida e morte”.


 


No fundo, quem diz muito com poucas palavras é o editor do Times, Bill Keller, citado no artigo.


 


Segundo ele, o jornalismo na net está para a modalidade convencional como o relógio para o calendário.


 

A comparação embute uma pá de significados. E uma conclusão: não podemos dispensar nenhum deles; devemos – os jornalistas e os leitores – é melhorá-los.