O editor-chefe do Globo, Rodolfo Fernandes, não aceita a idéia de que a imprensa brasileira poderia ter antecipado os problemas aeronáuticos do Brasil, embora reconheça que as redações carecem de especialistas e lamente que as sucursais dos grandes jornais tenham sido extintas.
Ele põe em questão a eficácia do ombudsman, em geral e especificamente no caso da Folha de S. Paulo: se funcionasse a contento, o jornal não repetiria erros praticamente idênticos, como publicar dossiês sem comprovação (Dossiê Cayman, em 1998, e Lista de Furnas, em fevereiro de 2006).
Em resposta a mensagem enviada pelo Observatório da Imprensa, Rodolfo escreveu: “Muitos jornalistas gostariam de ser autoridades, mas felizmente para o país ainda não são”.
O editor-chefe do Globo diz que a cobertura das questões sociais melhorou, mas a da infra-estrutura ainda é deficiente. Repele a idéia de que a imprensa possa resolver problemas. “Não somos o Judiciário, o Ministério Público, o governo”.
Rodolfo diz que os quatro ou cinco problemas principais do país já estão diagnosticados, mas falta ação governamental, porque não há consenso na sociedade. “Podemos identificar os problemas, alertar, fazer uns editoriais, mas se não há determinados consensos – e talvez seja isso que falta no Brasil – seremos mesmo uma sociedade fragmentada”.
Rodolfo Fernandes foi até agora o único dirigente de redação, entre meia-dúzia, que respondeu a uma mensagem eletrônica enviada no dia 3. Em seguida, deu a entrevista abaixo. Pode ter havido problema de comunicação com os demais destinatários da mensagem. (Ver após a entrevista o texto da mensagem e a resposta de Rodolfo.)
Eis a entrevista.
Rodolfo Fernandes – Acho isso que vocês fazem muito importante. Porque se deixar a imprensa ser analisada por pessoas que nunca botaram o pé numa redação de jornal, como está se disseminando um pouco por aí… A gente vê certas coisas e pensa: esse sujeito nunca entrou numa redação, nunca teve que decidir o que vai ser publicado.
O que tem de gente que nunca entrou numa redação dando aula de jornalismo é uma catástrofe. Tem muito leitor, também, sem pretensão de dar aula, que começa a imaginar como as coisas ocorrem. Quando não se conhece um assunto, faz-se um esquema teórico – pode até ser doméstico, simples, mas é um esqueminha – e ele é colocado no lugar do conhecimento. Entra-se num avião e se supõe que está tudo bem, o avião se comunica com a torre, está todo mundo bem nutrido, pensando direito, e às vezes não é assim.
R.F. – Temos aquela ilusão: o piloto não decola se não souber que está tudo bem, até porque a vida dele está em jogo. Quando se começa a ouvir o que os pilotos dizem… “Tem zona cega por aí, todo piloto sabe disso”. Nunca falaram isso para nós.
Na primeira parte de sua resposta à mensagem que o Observatório da Imprensa lhe mandou existe alguma concordância; na segunda parte há uma reação contra algo que seriam ilusões quanto ao poder da imprensa. Mas não se escreveu que a imprensa pode resolver. Ela pode ajudar, ou não, a resolver.
R.F. – Eu sei. Mas fica às vezes a sensação de que a imprensa tem um braço capaz de captar qualquer assunto antes de os problemas acontecerem. Nem o governo tem, imagine se a imprensa pode ter essa possibilidade.
É importante deixarmos bem claro quais são as limitações da imprensa. Até porque não é possível a imprensa fazer as coisas sem o cidadão engrossar o coro. O sistema político é um todo. A imprensa difunde informações, opiniões, queixas, críticas, reivindicações, ideologia, mas nada disso vai operar no vácuo.. Ela está longe de ter esse poder. Aliás, se dependesse estritamente da imprensa, tenho a impressão de que o presidente Lula não teria sido reeleito. Houve na imprensa muita indignação com a atitude do governo e do PT de tentar encobrir malfeitos. Do meu ponto de vista, é uma sinalização muito ruim para a sociedade. Criou-se um sistema assim: desde que não se admita o erro ou o crime, está tudo bem. Voltemos ao nosso tópico, que tem como ponto de partida a questão aeronáutica. O que é, a seu ver, deficiência de apuração?
R.F. – Anterior ou posterior?
Anterior. No caso dos aviões, um leitor, Milton Costa, mandou carta para a Época em que diz: vocês publicaram uma denúncia a esse respeito em 1998 (edição de 19/10.1998, reportagem “Vôo de alto risco” – “Comenta a sobrecarga dos controladores, os pátios lotados e a falta de operadores”, escreveu o leitor). O Fantástico, pouco depois do acidente com o avião da Gol, mostrou denúncia antiga, creio que de 2001, feita por um representante dos controladores. São pautas que não foram seguidas. Não se deu valor ao tema.
R.F. – Há duas deficiências da imprensa. A primeira é clássica: a imprensa não está preparada para assuntos complexos. Não há especialistas. Talvez essa discussão possa até desaguar na do diploma [obrigatório para exercer a profissão de jornalista]. Como não há mais a possibilidade de contar, por exemplo, com uma pessoa formada em medicina que virou jornalista, não há especialistas nos assuntos. Oferecemos cursos para jornalistas, mas é diferente. Não tem ninguém que entenda de aviação numa redação. Talvez um ou outro caso, o Roberto Godoy [Estadão], não sei. Mas não tem jornalista especializado em aviação. Acho que a imprensa melhorou muito nos últimos anos em cobertura de saúde, educação, melhorou muito nas questões sociais. Hoje recebemos relatórios do IBGE e há na redação pessoas especializadas nas questões sociais. Antonio Gois [Folha] é craque em educação, políticas sociais, a Flávia Oliveira aqui no Globo. Tem muita gente boa que fez a cobertura melhorar em muitas áreas. Mas se pegarmos questões técnicas e complexas, como aviação, não temos ninguém.
Para determinado grau de complexidade nunca se vai ter na redação quem entenda suficientemente do assunto. Aí entram as fontes qualificadas.
R.F. – Mas antigamente tínhamos uma cobertura da área militar, pessoas que tinham um pouco mais de acesso a algumas informações. Não quero dizer “Era bom e agora é ruim”, ou “Era ruim e agora é bom”.
O fim das sucursais
Pode-se pensar naquilo que a Eliane Cantanhêde disse em recente entrevista ao Observatório: as redações tinham mais gente.
R.F. – Uma discussão que temos tido aqui é: “Cobrir menos Brasília e mais Brasil”. Mas, para isso, é preciso ter gente. Temos que ter o olho do jornal nessas regiões. Isso, nós não temos.
Mas os jornais chegaram a ter uma rede grande fora de suas sedes. Não sei como era o Globo, não me lembro.
R.F. – Acho que o Globo era como os outros jornais. Tinha sucursais em Salvador, Porto Alegre. A bem da verdade, a Amazônia sempre foi mal coberta. Nunca ninguém teve uma sucursal lá.
O Estadão chegou a ter uma rede de correspondentes mais ou menos fixos na Amazônia. Mas nenhum jornal teve sucursal.
R.F. – Isso é uma deficiência do Brasil. Às vezes a mídia estrangeira tem mais interesse na Amazônia do que os jornais brasileiros.
As editorias não estariam mal desenhadas, do ponto de vista e pauta e acompanhamento? Não se trata de diagramação, que no Globo não é um empecilho, mas da organização interna.
R.F. – O Globo começa “quente”. Não começa com editoriais, artigos. Já começa, na página 3, com uma editoria que eu acho interessante, “O País”. Não tem a obrigação de começar sempre com política.
Editorias e estruturas de “times”
Acho que já estaria na hora de montar outras editorias, não necessariamente traduzidas em cadernos. Editoria de Segurança Pública, no sentido mais amplo, por exemplo. Hoje há uma disputa de espaço, dentro dos cadernos de cidade – Cotidiano, na Folha, Metrópole, no Estadão –, entre a estátua que não está na praça e os ataques do PCC, para exemplificar. Não há editorias de Emprego, de Qualidade do Ensino, para citar alguns temas cruciais.
R.F. – Para o leitor, são algumas editorias – O País, Rio, Economia, Mundo, Esportes [há também o Segundo Caderno e cadernos que são semanais, como Ela, Prosa & Verso, Informática etc.]. Mas internamente trabalhamos com uma estrutura de “times”. Por exemplo, o time da Segurança Pública. Pessoas que se reúnem, dedicadas àquele assunto, que estão se capacitando, estão sendo treinadas. Existe essa tentativa de, mesmo por baixo dos esquemas das editorias, ter um time de pessoas enfronhadas em determinados assuntos.
Quantos são?
R.F. – Sete ou oito. Produzem para diversas editorias. O time de Comportamento faz matérias para o Rio Show [caderno semanal] e para Rio, por exemplo, ou para Economia, eventualmente. O time de Saúde faz matérias para Rio, mas pode fazer para nacional [O País], também. É uma tentativa de não ficar na rigidez da editoria que o leitor lê.
O número de jornalistas diminuiu?
R.F. – Não tenho esse dado. Nos dez anos em que estou aqui, a redação do Globo tem as mesmas 350 pessoas. O Globo passou incólume por essa fase de demissões que a Folha e o Estadão tiveram. Se tem um problema de tamanho de equipe, é um problema de comparação com o que havia de dez anos para trás, quando existiam sucursais.
Brasília está do mesmo tamanho?
R.F. – Praticamente. São Paulo diminuiu, quando houve o acordo com o Diário [que era Popular, foi comprado de Orestes Quércia e virou Diário de S. Paulo], agora está aumentando um pouquinho.
O tamanho da equipe não é inadequado. Temos o número de pessoas habilitadas a fazer a quantidade de páginas que publicamos. Talvez se possa pensar em outra distribuição.
Há quem diga que diminuiu o espaço, o número de páginas nos jornais.
R.F. – Acho que os jornais não têm esse número preciso. Temos organização nos últimos anos, ficou uma coisa mais estruturada. Mas não sei quantas páginas o Globo publicava na época da eleição do Tancredo [1985], por exemplo. Nem havia propriamente um orçamento de páginas, como hoje. Hoje eu tenho um orçamento anual a cumprir. Vou redistribuindo em função dos acontecimentos. Explodiu alguma coisa na cidade, economiza-se do outro lado. E também temos que pensar que as pessoas não têm tempo para ler um jornal com páginas e mais páginas. O segredo é saber oferecer o assunto mais “quente” com mais profundidade. O outro assunto, que não é o do dia, ganha um registro. O projeto gráfico do Globo, feito em 1995, já previa isso. Não é mais aquela coisa de dar todas as notícias. Vai-se editar. Em última análise, nosso trabalho é pegar 500 assuntos e transformar em 20, e dizer para o leitor: “Esses são os mais importantes. E nesses que estamos trabalhando para dar a melhor notícia, a mais aprofundada”. Temos que apostar em determinados temas.
Ninguém alertou que havia problemas aeronáuticos
Além da dificuldade para tratar temas muito especializados, o que mais seria problemático na cobertura?
R.F. – Nesse caso dos aviões, eu não me lembro de ter tido alertas sobre o assunto. Como um assunto chama a atenção numa redação? Quando há um problema. Não precisava ter havido o acidente. Ou haveria uma denúncia, ou a entidade dos controladores teria que ter avisado, alguém da Aeronáutica vazaria algum papel. O fato de se ter uma estrutura militar talvez tenha evitado um vazamento. Mas realmente a sensação de quem estava voando no Brasil é de que existia até um serviço de excelência. As empresas aéreas nunca deram um alerta em relação a isso. Os pilotos, uma categoria com mais organização, eventualmente com acesso a jornais, nunca fizeram um alerta. Os agentes envolvidos nunca fizeram o mais leve alerta. Ou o problema não existia nessa proporção, ou nenhum dos envolvidos estava preocupado com essa gravidade.
O senhor acha que esse episódio pode fazer as redações tentarem dar uma varredura em outros assuntos, mudar um pouco?
R.F. – É um esforço que temos aqui. Eu não diria nem que é especificamente a partir desse caso. Mas essa concepção de que precisamos dar “menos Brasília e mais Brasil” é uma discussão permanente. A página 3 do Globo era de política, houvesse o que houvesse. Nos últimos anos, ela freqüentemente foi ocupada por educação, saúde, questões sociais, reforma do Judiciário. Muitas vezes. Talvez até mais em anos não-eleitorais. Buscar trazer para a frente do jornal assuntos que não são necessariamente de política. É claro que a política é importante, dá um perfil para o jornal, é um assunto que todo mundo comenta, muito embora ninguém agüente mais essa discussão de PMDB. Acho que precisa ser reconhecido o esforço de trazer para a frente do jornal assuntos mais próximos do leitor. Dar menos a politicagem do dia-a-dia. Eu morei muitos anos em Brasília…. Os personagens são menos interessantes, hoje, do que no tempo do Ulysses, do Tancredo. A imprensa já vem fazendo uma pequena correção de rota nisso.
Mas o caso da estrutura aeronáutica do Brasil é realmente muito intrigante, porque não recebemos nenhum sinal.
Mesmo quando há sinais, muitas vezes eles são desprezados. Há pelo menos cerca de 15 anos se diz que no Brasil a fome propriamente dita se reduziu muito. Embora tenha sido dito, as pessoas insistiram em falar da fome como fenômeno generalizado.
R.F. – Até que o IBGE publicou estudo mostrando o contrário. Mas o presidente Lula insiste. E o Bolsa Família veio, neste governo, do Fome Zero.
A dinâmica da notícia
Outro exemplo. O Globo publicou em maio de 2005 uma reportagem sobre as milícias que expulsaram traficantes de favelas cariocas da Baixada de Jacarepaguá. Mas elas não surgiram nessa época. Talvez alguns anos antes. [O Globo de domingo, 10 de dezembro, põe o assunto na manchete. Fala em 92 favelas, e que o avanço é muito rápido: uma nova favela sob controle das milícias a cada 12 dias, em média, o que aponta para uma proliferação muito rápida.] Levou algum tempo antes da primeira reportagem. Por que certos assuntos não são captados? É a correria da redação?
R.F. – Não. É a dinâmica da notícia. Como se percebe um assunto? A partir de que fato um assunto chama a atenção de um conjunto de jornalistas a ponto de virar ou notícia ou manchete de jornal? Trabalha-se com fontes de todo tipo. Se é assunto de polícia, certamente alguém deu aquela dica, foi-se investigar – por exemplo, a matéria em que vimos que as casas na área das milícias estavam marcadas com um sinal qualquer, diferente do C.V. [Comando Vermelho]. Aquilo começou num lugar específico, parece que foi na favela Rio das Pedras, e parece que agora está se disseminando, é uma matéria que estamos fazendo para domingo [a entrevista foi dada na sexta-feira, 8 de dezembro]. Está virando uma máfia. E tem gente no Rio achando bom…
Seria bom conferir votações de políticos nessas áreas. Há esquemas impressionantes no Rio. Não só no Rio, mas Brasil afora. No Rio é muito característico, e a política passou por uma degradação muito grande.
R.F. – No Rio tudo fica muito visível.
E essa relação se aviltou muito. As máscaras caíram.
R.F. – Recentemente, publicamos na primeira página um editorial de 50 anos atrás. É muito interessante. O editorial do Globo falava sobre o Rio e parece se referir à semana anterior. Algo como: “a população está apavorada, a Polícia é inoperante, só saber agir com violência, não tem inteligência”. É inacreditável.
Ombudsman não impede que a Folha repita erros
Um fenômenos que atravessou diferentes gerações de jornalistas na redação do Globo. Devia haver uma auto-exigência maior dos jornalistas. Por sinal, por que o Globo não tem ombudsman?
R.F. – Não temos o marketing do ombudsman, mas temos uma crítica interna diária, temos uma pesquisa diária feita com leitores, o Painel de Leitores, temos a maior seção de cartas da imprensa brasileira, temos um serviço de atendimento ao leitor, grande. O Aluízio Maranhão [editor de Opinião] funciona para dentro, faz uma crítica interna com análises do jornal e de qualidade específica de texto, entre outras. O que não fazemos é crítica dos outros jornais. Porque, na verdade, muitas vezes o ombudsman da Folha é muito mais um crítico dos outros jornais do que da Folha. Eu diria que nós não temos o marketing do ombudsman, mas temos vários mecanismos de controle.
Devo entender que, na sua opinião, o ombudsman é marketing?
R.F. – Não, não. A Folha faz marketing do ombudsman. Isso é do jogo. Ela vende bem a idéia do ombudsman, como se ela fosse o único jornal que tem controles de qualidade. Eu até já conversei com o [Marcelo] Beraba [atual ombudsman da Folha] sobre isso. Se a crítica à publicação do Dossiê Cayman [documentação falsa que circulou em 1998 com a acusação de que Fernando Henrique Cardoso, Mario Covas e José Serra tinham depósitos em dólares no exterior] tivesse servido para uma reflexão interna que impedisse, anos depois, a publicação da Lista de Furnas [documento falso que listava doações irregulares que teriam sido feitas para candidatos de vários partidos, principalmente PSDB e PFL, na campanha eleitoral de 2002] – estou citando a própria Folha –, eu ficaria muito feliz: “Bom, o ombudsman realmente faz diferença”. Mas a Folha tem ombudsman, embarcou no Dossiê Cayman – embarcou e sustentou – e anos depois publica a Lista de Furnas, com todas as evidências de que aquilo era uma fraude… É ótimo ter ombudsman, mas eu prefiro ter controles internos de qualidade melhores do que o ombudsman falando uma coisa e a redação fazendo outra coisa. Prefiro ter um comprometimento interno com determinadas práticas, acho que isso funciona mais do que ter o ombudsman lá com a sua bandeira, gritando, e a redação fazendo o que quer. Se se sentir que os padrões de qualidade que o Globo se propõe seguir estão falhando, faz sentido. Vamos partir para algum outro mecanismo, porque esse não está dando certo. Eu acho que está dando certo, acho que o Globo é um jornal menos arrogante do que a Folha. Por que a Folha é o jornal mais arrogante que existe? Há até, entre os jornais que têm ombudsman, uma discussão sobre se o fato de ter ombudsman torna a redação mais arrogante, porque, como ela dá satisfação aos leitores por meio do ombudsman, isso permite que os seus jornalistas se sintam mais soltos. Tem um caso muito emblemático em relação a isso. A Escola Base. Não quero dizer que, se tivesse sido no Rio, teria sido diferente. A postura da Folha diante de certos eventos é muito arrogante. Todo mundo sabe disso. As respostas que a Folha dá a pessoas que a contestam… O sujeito fala, prova uma coisa por A mais B. Vem: resposta do Fulano de Tal. E o jornalista faz um artigo, em um ou dois parágrafos, que não responde a nada do que o sujeito falou, mas a Folha se considera satisfeita com a resposta.
Cobertura da área social melhorou
Se o senhor tivesse que escolher algumas áreas de alta prioridade para os jornais, para o Globo, especificamente, de atenção especial, cuidado, discernimento, no Brasil de hoje, quais apontaria?
R.F. – Uma preocupação nossa nos últimos anos que resultou em melhoria é a cobertura da área social. O Brasil não tinha uma boa cobertura da área social. Mas não entendida como: “Vamos fazer uma matéria no Nordeste”. Não. É entender os problemas, ler as estatísticas, saber o que está acontecendo, poder contestar quando o governo, qualquer governo, lança um programa assistencialista. E isso melhorou muito. A área social inclui educação e saúde. Isso talvez até remeta para a parte da sua mensagem sobre a política bem-sucedida de combate à Aids no Brasil [ver adiante]. Inclusive pela parte da cobertura. Há jornalistas especializados em medicina muito mais preparados hoje do que existiam anos atrás.
No processo de derrota da ditadura e logo após, toda denúncia da questão social era entendida praticamente como ação, como “resgate da dívida social”, o que nunca é verdade. Denunciar e não mudar nada é até perigoso, porque vai acostumando as pessoas com aquilo que é denunciado. Mas os problemas persistem. A sociedade ainda não se deu conta de como é grave, por exemplo, a falta de qualidade no ensino.
R.F. – A cobertura da educação melhorou, mas ainda temos muito para andar nesse terreno.
Infra-estrutura, o gargalo
E o que mais?
R.F. – A parte de infra-estrutura, por exemplo, que é o grande gargalo do Brasil de hoje. E essa cobertura é difícil, porque está espalhada pelo Brasil inteiro: porto, ferrovia, rodovia. Quando se faz uma matéria sobre infra-estrutura, não basta ver o número do Orçamento. Temos hoje profissionais que sabem analisar melhor um orçamento, contas públicas, mas essa cobertura requer um conhecimento do problema na ponta. O caso da aviação está inserido na questão da infra-estrutura.
A burocracia, como fenômeno ligado à corrupção, que desestimula investimentos. Brada-se muito contra isso, mas de modo um tanto genérico, sem pôr muito o dedo na ferida.
R.F. – É um desafio para o país. Tempos atrás, fizemos uma reportagem para saber quanto tempo demora para abrir uma empresa. E comparamos com o tempo que demora no exterior.
Alguns anos atrás o repórter Carlos Vasconcellos fez para a edição brasileira da revista América Economia uma reportagem que consistiu em subir na cabine de um caminhão à saída de uma fábrica, em Sorocaba ou Piracicaba, e relatar todos os entraves encontrados até o desembarque da carga no porto de Santos. A viagem levou três dias! Há maneiras de sensibilizar o leitor que não custam muito tempo e dinheiro.
R.F. – Minha sensação, mais como cidadão do que como jornalista, é que os problemas já estão mais do que identificados. É um problema de ação governamental. Sabemos quais são os quatro ou cinco problemas principais do Brasil. Sabemos onde está o gargalo da Previdência, onde está o problema da qualidade do ensino, problemas de verbas na saúde. Mas a imprensa tem um limite. Às vezes acho até que a gente cansa o leitor. Previdência, por exemplo, que era um assunto esquecido, porque o Brasil era muito jovem, de uns cinco anos para cá essa discussão é martelada no leitor e não há decisão política de fazer. Paciência, Nenhum governo quer fazer reforma da Previdência.
Fragmentação desanimadora
Isso é um atestado de que o mapeamento é limitado. Um dos grandes desafios seria entender por que se identifica um problema e não se consegue fazer com que ele seja resolvido.
R.F. – A sociedade decide a partir de determinados consensos. Numa sociedade que é fragmentada, em termos de idéias, como a brasileira – onde dez anos depois de se aprovar a cláusula de barreira vem o Supremo e a derruba –, às vezes dá até um certo desânimo. No domingo [10/12] teremos uma pauta sobre Bolsa Família, a partir de uma carta de um leitor: em várias regiões do país as empresas não conseguem prover os empregos porque o pessoal do Bolsa Família não quer trabalhar [a reportagem do Globo, corretamente, registra a resposta do governo, por sinal interessante: “No fundo, o que a gente está combatendo é o trabalho precário, o trabalho escravo, o trabalho indigno”, declara a secretária nacional de Renda da Cidadania do Ministério do Desenvolvimento Social, Rosani Cunha]. A LDB, da educação, faz dez que foi aprovada e a maioria das coisas não saiu do papel. Analfabetismo: o governo, nos últimos quatro anos, governo Lula, gastou R$ 1 bilhão para alfabetizar adultos e o resultado é pífio. Essa discussão toda de que o meio ambiente está travando o país: quando se vai ver a lista das obras, tem um monte de obra aprovada, com licença ambiental concedida, que não anda. Os temas estão aí.
O que a imprensa pode fazer tem um limite. Não somos poder judiciário, Ministério Público, governo. Podemos identificar os problemas, alertar, fazer uns editoriais, mas se não há determinados consensos – e talvez seja isso que falta no Brasil – seremos mesmo uma sociedade fragmentada.
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“Muitos jornalistas gostaria de ser autoridades, mas felizmente para o país ainda não são”
Eis o texto da mensagem enviada a Rodolfo Fernandes e a outros editores:
“O que se ficou sabendo sobre problemas de controle de tráfego aéreo no Brasil após o acidente com o avião da Gol mostra que ao longo dos anos houve uma cobertura deficiente dessa área. Pode-se imaginar, sem forçar o raciocínio, que uma cobrança maior por parte da imprensa teria sido capaz, no limite, de evitar o desastre. Houve alertas publicados na própria mídia ao longo dos anos. Mas não houve cobertura sustentada.
Minhas perguntas, a esse respeito, são:
Você concorda com a premissa acima?
Em caso positivo, a que atribui essa deficiência?
Poderia apontar outros assuntos de alta relevância que, a seu juízo, foram ou são objeto de cobertura igualmente insuficiente?
O segundo ponto é o oposto: uma cobertura correta, ao longo dos anos, ajudou o Brasil a ter um elogiado programa de combate à Aids.
1) Você concorda com a premissa acima?
2) Em caso positivo, a que atribui essa eficiência?
3) Poderia apontar outros assuntos de alta relevância que, a seu juízo, foram ou são objeto de cobertura jornalística bem-sucedida?’
Esta foi a resposta de Rodolfo Fernandes:
“Concordo em parte. É fato que o setor não é objeto de cobertura constante da mídia, mas isso se deve, provavelmente, ao fato de nunca termos tido um acidente, nem alertas anteriores, e nem mesmo qualquer indício de crise no setor. Sempre se viajou de avião no Brasil com razoável qualidade. E, além disso, qual o setor do país que não está sucateado num Estado falido como o nosso? É inimaginável supor que a mídia tenha – ou deva ter – estrutura para descobrir todos os problemas de todas as áreas. Os jornalistas se aprimoraram, nos últimos anos, na cobertura de setores vitais, como saúde, educação, contas públicas, meio-ambiente, pobreza e área social. Esses são os principais problemas do Brasil pós-democratização e acho que houve grande progresso nas redações ao tratar desses assuntos, há ótimos profissionais hoje dedicados a esses temas. Isso talvez explique a excelência de coberturas como Aids. Mas o raciocínio de que a imprensa poderia ter evitado o acidente da Gol é, a meu ver, um equívoco. Até hoje, mais de um mês após o acidente, com todos os melhores técnicos do país envolvidos na apuração oficial, não se sabe exatamente o que ocorreu. A imprensa não é governo, não é ministério público, não é poder judiciário, não julga e nem absolve, não define prioridades de investimento. A falência destas instituições é que leva muita gente a jogar nos ombros dos jornalistas a responsabilidade por problemas que são das autoridades. Muitos jornalistas gostariam de ser autoridades, mas felizmente para o país ainda não são”.