Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Apenas copyright pode garantir progresso

Folha de S. Paulo, 26/2

Scott Turow, Paul Aiken e James Shapiro, The New York Times

Apenas ‘copyright’ pode garantir progresso

Arqueólogos concluíram uma escavação notável na zona leste de Londres no verão britânico passado.

Entre os artefatos que encontraram, estavam sete puxadores de cerâmica, evidências físicas de um experimento quase perfeito realizado no século 16 sobre o vínculo entre comércio e cultura.

Quando William Shakespeare estava crescendo em Stratford-upon-Avon, na zona rural, carpinteiros naquele local de Londres estavam construindo os muros daquele que alguns consideram ter sido o primeiro teatro erguido na Europa desde a Antiguidade.

Em pouco tempo, outros teatros foram surgindo pela cidade. Quem podia pagar tinha direito de entrar e assistir à peça; quem não podia, não assistia.

Quando Shakespeare começou a escrever, essas ‘paywalls culturais’ já eram abundantes em Londres.

Trabalhadores com urnas para dinheiro (ostentando os puxadores singulares encontrados pelos arqueólogos) nas mãos ficavam na entrada de um número crescente de teatros ao ar livre, recolhendo um ‘penny’ de ingresso.

Com essa renda, dramaturgos eram pagos para escrever novas peças. Pela primeira vez na história, tornou-se possível ganhar a vida escrevendo para o público.

Uma onda de dramaturgos brilhantes surgiu quase da noite para o dia, entre eles Christopher Marlowe, Thomas Kyd, Ben Jonson e Shakespeare.

Esses talentos tinham encontrado a oportunidade, as condições e o dinheiro para exercer seu ofício.

Qual foi a constatação simples desse experimento? Como é o caso de muitas outras coisas, o talento literário permanece sem se desenvolver, a não ser que os mercados o recompensem.

VIRTUALIZAÇÃO

No auge do Iluminismo, o ‘paywall cultural’ tornou-se virtual, quando autores britânicos conquistaram o direito de criar mercados legalmente protegidos para suas obras.

Em 1709, a Inglaterra promulgou a primeira lei do ‘copyright’, com o objetivo expresso de combater a pirataria de livros e ‘para incentivar homens eruditos a compor e escrever livros úteis’. Os direitos autorais, agora vinculando fortemente os autores, as gráficas (e tecnologias posteriores) e o mercado, mostrariam ser um dos grandes sucessos de política pública da história.

Os livros iriam atrair investimentos de trabalho de autores e capital de editores em escala colossal.

Hoje, porém, esses mercados estão se desfazendo. A pirataria tornou-se um empreendimento lucrativo, inovador e global. A ascensão da internet levou à visão, por parte de muitos usuários e empresas que operam na rede, de que os direitos autorais são uma relíquia adequada apenas às necessidades de gigantes corporativos que estão fora de sintonia com a atualidade.

Basta pensar nos dedicados ‘compartilhadores de arquivos’ que transmitem e recebem material protegido sem o menor sentimento de culpa.

Eles são encorajados e assistidos por um punhado de professores de direito e outros especialistas que se tornaram peritos em formular argumentos contraintuitivos segundo os quais os direitos autorais constituem empecilhos à criatividade e ao progresso.

A teoria deles é que, se enfraquecermos gravemente as proteções dos direitos autorais, a inovação irá florescer de fato.

É uma ideia sedutora, mas que ignora séculos de progresso científico. Uma cultura rica requer contribuições de autores e artistas que dediquem milhares de horas a uma obra e a vida inteira a seu trabalho.

INEVITABILIDADE

Desde o Iluminismo, as sociedades ocidentais acostumaram-se a acreditar que o progresso é inevitável. Ele nunca o foi.

O progresso é decorrente da obediência a regras que foram construídas cuidadosamente e práticas que foram iniciadas por pessoas que viviam sob a sombra comprida da Idade das Trevas. Quando mudamos essas regras, corremos riscos.

Em julho passado, um público pequeno reuniu-se naquela escavação arqueológica em Londres para ouvir dois atores ler trechos de ‘Sonho de Uma Noite de Verão’ no lugar onde a peça estreou, no ponto onde ficavam as paredes mais valiosas do teatro.

O RESTO É SILÊNCIO

Embora as fundações do Theater (como era conhecido) permaneçam, as paredes propriamente ditas, não.

Quando a companhia de Shakespeare perdeu o direito de arrendar o teatro, seus membros desmontaram a armação de madeira do Theater e levaram as paredes para um novo local, do outro lado do Tâmisa, batizando seu novo teatro de The Globe.

Shakespeare levou com ele seu sistema de cobrança de ingressos.

Mais tarde, o Globe foi destruído em um incêndio e reconstruído em pouco tempo. Seu fim definitivo aconteceria em meados do século 17, no início de uma guerra civil sangrenta, quando as autoridades ordenaram a demolição das paredes.

O regime não foi motivado por ideais de acesso livre ou ilusões de que iria acelerar o progresso.

Ele simplesmente queria silenciar os dramaturgos, que transmitiam ao público pagante do teatro uma grande gama de pensamentos desestabilizadores. O experimento acabou.

Foram rompidos os laços dos dramaturgos com o comércio, e a maior explosão de talento dramatúrgico que o mundo moderno já conheceu chegou ao fim.

Assim, simplesmente.

SCOTT TUROW, romancista, é o presidente do Sindicato de Autores.

PAUL AIKEN é o diretor executivo do sindicato.

JAMES SHAPIRO, integrante do conselho de direção do sindicato, leciona Shakespeare na Universidade Columbia.

Tradução de CLARA ALLAIN