Semana da Pátria é uma espécie condensada de silly season, ou temporada de bobagens, como os jornalistas gringos se referem ao efeito do verão lá deles sobre o noticiário. É a estação do ano em que, à falta de melhor, publicam o que tiverem à mão, porque ainda está para nascer o jornal que sai com espaços em branco por falta de assunto.
Lembrei-me disso ao topar na primeira página da Folha de hoje com a chamada ‘Planalto vai gastar 41% a mais no Sete de Setembro’. Chamada e matéria de alto de página, dentro, informam que o aumento no custo do desfile, de R$ 800 mil sobre o R$ 1,4 milhão do ano passado, se explica, ‘entre outras razões, porque o governo decidiu ampliar a extensão das grades de isolamento na Esplanada dos Ministérios’ [de 7,5 km para 9,5 km] e ‘maior número de banheiros químicos’ [de 90 para 120].
A matéria – de tirar o fôlego, como já deve ter dado para perceber – encaixa a lembrança de que no desfile de 2005, ‘no auge do escândalo do mensalão, Lula passou por constrangimentos na solenidade: manifestantes pediram o seu impeachment e se posicionaram [sic] com faixas numa área em frente ao seu palanaque’. E em 2006, o que aconteceu?, há de se perguntar o leitor aflito.
Mas passemos. O bom dos jornais é a sua ‘biodiversidade’ – quando a têm. É o ponto forte da Folha, como se sabe. E graças a isso, na mesma edição que traz aquela matéria de segunda o leitor é premiado com um artigo de primeira do professor Marcos Nobre, doutor em Filosofia pela USP, com pós-doutorado na Alemanha, que escreve às terças na página de opinião do diário.
O artigo tem um singelíssimo título, ‘Forças Armadas’, e contém uma robusta cobrança: o Exército, escreve o professor, precisa dizer qual é sua.
Vale a leitura.
‘Quando se mistura política e militarismo, a democracia costuma balançar. Foi o que se viu na nota do comandante do Exército, general Enzo Martins Peri. O texto considera que colocar em questão a Lei da Anistia importaria em ‘retrocesso à paz e à harmonia nacionais, já alcançadas’.
O lapso gramatical (‘retroceder a’ significa ‘voltar a’) não é importante por si mesmo, mas por levantar dúvidas sobre a posição que o Exército entende ter na democracia brasileira. Afinal, por que o simples ‘colocar em questão’ de uma lei destruiria ‘a paz e a harmonia nacionais’?
A criação do Ministério da Defesa, sob o governo FHC, foi um avanço importante. Mas, até agora, apenas no papel. O ministro Nelson Jobim, como todos os anteriores, não tem poder nem mesmo sobre a Anac. Quando diz ‘o comandante sou eu’, está apenas fazendo uma bravata.
O confronto em torno do livro-relatório oficial ‘Direito à Memória e à Verdade’ foi ele mesmo uma sucessão de bravatas. O ministro diz que ‘não haverá indivíduo que possa reagir’, o Exército reage e o ministro recua, posicionando-se contra a revisão da Lei da Anistia. Para arrematar, o ex-presidente do STF disse que esse era um ‘problema do Judiciário’.
As vítimas da ditadura de 1964 e seus descendentes recorreram ao Poder Judiciário como instância reparadora porque não conseguiram por outro modo que integrantes das Forças Armadas viessem enfrentar no debate público as acusações que lhes são dirigidas. Mas nem mesmo aí conseguem esse objetivo elementar de qualquer democracia porque o recurso aos tribunais militares está sempre à mão para bloquear a discussão pública.
A nota do Alto Comando afirma que, ao longo da história, ‘temos sido o mesmo Exército de Caxias’. Mas não explica como um duque inteiramente comprometido com a monarquia em 1865 pode expressar o mesmo Exército de Deodoro e Floriano na proclamação da República ou de Góes Monteiro, sustentáculo da ditadura do Estado Novo. Ou de Lott, que, em 1955, garantiu a posse de JK, ou dos generais golpistas de 1964.
Ao se entender assim, o Alto Comando se recusa a refletir em público sobre a sua própria história e sobre os diferentes papéis que desempenhou ao longo do tempo.
A nota diz que ‘os fatos históricos têm diferentes interpretações, dependendo da ótica de seus protagonistas’. Falta agora que o Exército venha a público dizer qual é a sua, se é que há mesmo uma única interpretação no interior da corporação. Enquanto as Forças Armadas se recusarem ao diálogo franco e aberto, não há perspectiva de alcançar a ‘paz e a harmonia’ que também desejam.’
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