Morreu na contramão / Atrapalhando o tráfego
Chico Buarque, ‘Construção’, 1971.
A notícia do dia em São Paulo foi o congestionamento recorde de 153 quilômetros, ontem de manhã, em conseqüência do bloqueio de três faixas da via expressa da Marginal do Pinheiros.
O bloqueio foi causado por moradores de uma favela “às margens da marginal”, como disse, distraída, a Folha. Eles protestavam contra a remoção das 70 famílias que ocupavam 140 barracos na favela Real Parque – ah, os nomes da megalópole: Real Parque, Jardim Felicidade…
Diante da resistência dos favelados à reintegração de posse determinada pela Justiça, sob protesto da Defensoria Pública, a PM usou bombas chamadas de efeito moral; gás pimenta, no caso.
Ocupa cinco das seis colunas da Folha, no alto da primeira página, a foto espetacular, de Stephen Salon, da Futura Press, de uma família – homem, mulher, menina de chupeta na boca – fugindo da pimenta.
Ao lado, o título da chamada, falando em conflito, remoção, favela e trânsito recorde.
Lá dentro, tudo aparentemente nos conformes: a descrição, as aspas, o infográfico, o lado da Prefeitura e o box com a contestação da Defensoria.
Mas o primeiro a entrar em cena na reportagem é uma das vítimas do “conflito”. Não, não um favelado. Mas um caminhoneiro entalado na encrenca por mais de três horas.
Vem em seguida um capitão da PM:
“Não jogamos spray em crianças. As pessoas usaram crianças como escudo. Não dava para dispersar o grupo sem usar o gás pimenta. Foi melhor do que bater.”
Só então, a voz da favela:
“Estão jogando bomba aqui dentro. Tem muita fumaça. Eu já perdi um filho, não quero perder outro”. Palavras, segundo o jornal, de uma desempregada de 28 anos, grávida de oito meses, que passou mal e foi levada ao hospital.
A ordenação dos fatos e das citações estabelece uma hierarquia jornalística – uma forma de ver e relatar um acontecimento. A configuração, no caso, pôs no topo da narrativa o efeito de um episódio da esfera dos choques sociais que incidiu sobre o maior problema cotidiano da cidade: a circulação. Maior porque nenhum outro atinge tantas pessoas durante tanto tempo a cada dia.
Mesmo assim, na contramão das coberturas óbvias, não seria impossível, muito menos amalucado, construir a informação privilegiando o drama humano dos sem-teto e sem-carro, em vez das atribulações – decerto exasperantes, porém não dramáticas – dos motoristas prejudicados. Ainda que estes fossem incomparavelmente mais numerosos e que o congestionamento em que se viram aprisionados tenha se irradiado para quase toda a cidade.
Por que não uma matéria que abrisse com a história, mais bem contada, da gestante que aspirou gás mostarda, em seguida ampliasse o foco para a expulsão dos favelados, e só então mergulhasse no congestionamento, com quantos detalhes achasse desejáveis para dar conta do transtorno por que passou a cidade?
Afinal, uma coisa é um engarrafamento gigante causado, digamos, pelo tombamento de um caminhão carregado de material inflamável. Outra é a que aconteceu ontem. Claro que, para a imensa maioria dos prejudicados, tanto faz: acidente ou incidente, o fato é que perderam a metade do dia.
Mas e aqueles – poucos – que perderam o pouquíssimo que tinham?
Ora, que pergunta. Nos ajuntamentos urbanos brasileiros, o motorista tem precedência sobre o pedestre. Por que não haveria de tê-lo, na imprensa, sobre o favelado?