Certa vez, José Ramos Tinhorão recebeu um pacote endereçado a ele na redação do jornal em que trabalhava. Dentro, havia um penico, com um recado: ‘Este penico pertenceu a Noel Rosa’. Uma piada de um colega, sobre a suposta mania de Tinhorão de colecionar objetos e documentos relacionados à história da música popular brasileira.
‘Eles me gozavam como se eu colecionasse por fetiche. Quando me viam sair da redação com recortes de jornal, perguntavam: `Vai vender no papeleiro?´’ – recorda.
O que os colegas testemunhavam, qualificando como uma estranha obsessão, era na verdade a formação do mais importante acervo pessoal sobre música popular brasileira. A partir desta semana, esse enorme volume de informações está na Reserva Técnica Musical do Instituto Moreira Salles – ele vinha sendo catalogado desde 2001 na sede paulista do IMS. A chegada do acervo – cerca de 6,5 mil discos de 76 e 78 RPM, 6 mil discos de 33 RPM, fotos, filmes, 32 mil partituras, scripts de rádio, cartazes, publicações, rolos de pianola e uma biblioteca com mais de 14 mil obras sobre música e cultura popular urbana de forma geral – é celebrada com uma exposição no Instituto, num momento em que o pesquisador lança dois livros – A música popular que surge na era da revolução (Editora 34) e Crítica cheia de graça (Empório do Livro) – e ganha uma biografia, Tinhorão, o legendário, de Elizabeth Lorenzotti (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo).
‘Críticos são uns bobalhões’
Tinhorão começou a formar seu arquivo em 1961, quando recebeu a sugestão de fazer uma série de textos sobre samba. Como não havia muita literatura sobre o tema, ele começou a colher o que encontrava, sempre com um olhar que via História onde outros viam apenas o descartável. Foi assim que reuniu, por exemplo, um gigantesco acervo de modinhas (publicações com letras de canções populares, não encontradas nem na Biblioteca Nacional): ‘Elas eram vendidas por engraxates.’
Com a proliferação das bancas de jornal, cessou o interesse por elas. ‘Começaram a ganhar força as publicações com cifras’, conta Tinhorão. A popularização das cifras, aliás, segue as mudanças urbanas do Rio. Antes, as famílias tinham pianos e compravam partituras. Com a verticalização da cidade, ficou mais difícil: como levar um piano para o oitavo andar? A música popular, então, refugiou-se no violão.
A interpretação sociológica da música popular guia não só o trabalho de Tinhorão como historiador, mas também como crítico – termo que ele não gosta, argumentando que ele não fazia críticas, e sim ‘análise da música inserida no contexto sociocultural brasileiro’. Um olhar – baseado em premissas do ‘materialismo histórico-dialético’, explica – que rendeu a ele a alcunha de ‘polêmico’, sobretudo a partir de seus ataques à bossa-nova, que ele compara a um carro estrangeiro montado no Brasil. Posição que ele sustenta décadas depois: ‘Minha opinião é baseada em documentos. Se alguém discorda, deve dizer como é e provar’, desafia Tinhorão, que diz que não há crítica de música popular no Brasil. ‘Os chamados críticos de discos são uns bobalhões que elogiam o que gostam e falam mal do que não gostam. O meu trabalho, de avaliação a partir de documentos, eu inaugurei, e ninguém mais continuou.’
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Jornalista