No dia-a-dia, o jornalismo é simplificadamente comparado a uma fábrica de salsichas. Por isso os momentos mais brilhantes devem ser celebrados. A edição de ontem (1/9) do Globo, com as perguntas ao candidato Lula deixadas sem resposta, é um desses acontecimentos marcantes. Faz lembrar, simetricamente, um livro em que Cora Rónai publicou uma entrevista que não lhe foi dada por John Kenneth Galbrait (Idéias: Um Livro de Entrevistas, 1981). Ela tinha estudado tanto para entrevistar Galbraith que conseguiu remontar, com fragmentos de perguntas e respostas, o que teria sido uma entrevista. Todas as outras dez entrevistas do livro haviam sido publicadas no Jornal do Brasil. Cora Rónai, por sinal, levou para a entrevista com Lula a seguinte pergunta: ‘Presidente, o senhor se considera um bom pai?’
As perguntas dos jornalistas do Globo mostram que eles se prepararam para entrevistar Lula sem fazer rapapés ao poder. Como deve ser.
O efeito da pergunta sem resposta é poderoso. O espaço em branco como que dá mais relevo ao questionamento.
Na página 2, o jornal conta que o convite ao presidente da República foi feito com um mês de antecedência e que em nenhum momento houve sinalização de que ele não iria. O Globo afirma que ‘Lula é, desde o fim da ditadura militar, o presidente da República que menos se dispôs a conversar com jornalistas, hábito que nem presidentes de estilos, tendências e partidos variados, como Collor, Sarney, Itamar e Fernando Henrique, deixaram de cultivar nestes 21 anos de democracia’.
O título da página da não-entrevista foi: ‘Longe da ´praça pública de debates´. Lula recusa convite do Globo para ser entrevistado por colunistas do jornal.’
O jornal contrastou a ausência do candidato com o que havia dito na véspera o presidente, na abertura do Sexto Congresso Brasileiro de Jornais: que a imprensa é a grande praça pública de debates, que ‘a liberdade de imprensa não pode ser um valor relativo’ e que sua história política se deve muito ‘à imprensa livre e independente’. Para inglês ver. Em entrevista dada à revista Imprensa em 1993 Lula havia deixado patente que desconfia da imprensa e a tem como antagonista.
É muito forte a tradição política, não apenas brasileira, mas particularmente viciosa no Brasil, de falar uma coisa para cada platéia. O não falar não era novidade até o Globo colher um momento ímpar e pôr o dedo na ferida. Agora vai ser mais difícil fugir de debates.
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