Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Quem tem medo do Ministério Público?

Com a Constituição de 1988, o Ministério Público brasileiro teve bastante ampliadas suas atribuições, continuando a desempenhar muitas de suas funções tradicionais, tanto na área civil quanto na penal, mas passando a ter legitimidade para agir em defesa de direitos coletivos e difusos, tendo o direito e o dever de promover a responsabilidade de quem lesar o interesse público e assumindo, assim, a condição de verdadeiro Advogado do Povo.

Com efeito, em decorrência das disposições constitucionais foi assegurada ao povo, no seu conjunto, a defesa de seus direitos e interesses legítimos, o que se dá por meio do Ministério Público, cujas competências o obrigam a agir em defesa da Constituição, das leis e dos direitos da cidadania. Incluem-se entre suas atribuições o resguardo do patrimônio público e o controle da legalidade dos atos dos agentes públicos ou que tenham efeitos sobre os interesses públicos, tendo legitimidade para propor ações judiciais promovendo a responsabilidade daqueles que, nesse âmbito, praticarem ilegalidade ou abuso de poder.

Essas novas atribuições do Ministério Público representam a resposta brasileira à exigência generalizada de um órgão público que, para resguardo do interesse público, pudesse e devesse agir por iniciativa própria, levando à apreciação do Judiciário os atos danosos ao bem público e propondo a punição dos responsáveis por tais atos, sejam eles do setor privado ou do setor público.

Sonegação fiscal e remessas ilegais

É interessante assinalar que a criação de um órgão com tais atribuições foi suscitada no ambiente de restauração democrática e busca de aperfeiçoamento da convivência social que levou à aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Foi assim que, nos países escandinavos, surgiu a figura do ombudsman, e na Constituição espanhola apareceu o Defensor del Pueblo, denominação muito expressiva e claramente reveladora do papel atribuído ao novo órgão.

O constituinte brasileiro examinou essas novas figuras jurídicas e concluiu que no contexto brasileiro a solução mais adequada ao sistema jurídico brasileiro seria a ampliação das atribuições do Ministério Público que, por suas funções institucionais, enumeradas no artigo 129 da Constituição de 1988, passou a ter, além de outras, a incumbência de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social e de outros interesses difusos e coletivos. Um dos efeitos benéficos dessas inovações tem sido a responsabilização jurídica de pessoas das camadas mais ricas da população, que tradicionalmente ficavam fora do alcance do controle de seus atos, mesmo que claramente danosos ao interesse público.

Assim, por exemplo, no controle das contratações pela administração pública passou-se a examinar também a responsabilidade do particular que participar de uma prática lesiva ao interesse público. A par disso, passaram a ser objeto de controle mais rigoroso a sonegação fiscal e a remessa ilegal de dinheiro para o exterior, o que tem gerado reações indignadas dos responsáveis por tais práticas, que se consideravam imunes ao controle.

Um projeto imoral e inconstitucional

Em reação a essa inovação, está tramitando no Congresso Nacional um projeto de lei visando a intimidar o Ministério Público, pretendendo que, sob ameaça de punição pelo estrito cumprimento do dever constitucional, os membros da instituição não atuem com muito rigor e sejam condescendentes com os corruptos. Com efeito, foi proposto um projeto de lei que, pelos antecedentes de seu autor, já se sabe que está muito longe de ter objetivos moralizadores ou de resguardo do interesse público. De fato, o proponente é o deputado paulista Paulo Maluf (PP) que, quando prefeito de São Paulo, cometeu tantos e tais abusos que a imprensa o consagrou como corrupto notório.

Segundo esse projeto, redigido em linguagem maliciosamente ambígua, constituirá crime a representação por ato de improbidade ou a propositura de ação contra agente público, quando o autor da denúncia praticar o ato ‘de maneira temerária’. Note-se que o referido deputado foi várias vezes denunciado pelo Ministério Público e, obviamente, teme novas denúncias, ficando evidente que, nesse caso, o deputado está querendo legislar em causa própria. Como é público e notório que existem corruptos exercendo mandato no Congresso Nacional, o autor do projeto certamente contava com a pronta adesão dos parlamentares e, consequentemente, com a rápida tramitação.

Num primeiro momento parecia confirmada sua expectativa, falando-se mesmo em colocar esse projeto entre as considerados prioritários pela Câmara dos Deputados. Entretanto, a pronta e firme reação do Ministério Público chamou a atenção da opinião pública e dos parlamentares e a consequência foi um retraimento dos defensores da proposição, a tal ponto que, conforme o noticiário da imprensa, o projeto Maluf já não figura entre os prioritários e certamente não será votado no primeiro semestre deste ano, sendo pouquíssimo provável que ele seja posto em discusssão no segundo semestre, quando, pela proximidade das eleições nacionais, a opinião pública estará muito vigilante.

Por tudo isso, causa estranheza o tratamento que vem sendo dado ao assunto nos últimos dias pelo jornal O Estado de S.Paulo. Com efeito, esse jornal foi sempre dos mais veementes na denúncia da corrupção no governo Maluf e na afirmação de Paulo Maluf como ‘corrupto notório’. No entanto, em editorial do dia 12 de abril, investe contra o Ministério Público e proclama, com evidente satisfação, que a instituição, que já tem sido objeto de restrições no Legislativo, poderá sofrer ‘outro baque, que é a aprovação, dada como certa, do projeto do deputado Paulo Maluf, que pune membros da corporação que agirem com má-fé, buscando promoção pessoal ou visando objetivo político’.

Ora, além de não constarem do projeto essas expressões, vários órgãos da imprensa noticiaram que ele já não está entre os projetos prioritários e que sua tramitação deverá ficar para o próximo ano. Assim, pois, as perspectivas apontam para a rejeição desse projeto imoral e inconstitucional, que pretende criar obstáculos para que o Ministério Público cumpra um dever que lhe é expressamente atribuído na Constituição.

O Ministério Público tem dado contribuição relevante para a punição dos corruptos, nos termos da lei, e isso é bom para o povo brasileiro.

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Jurista, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo