Exibido ontem logo antes do horário eleitoral e publicado na primeira página dos jornais de hoje, o manifesto ‘Basta à violência.’ – assim mesmo, com ponto final, como se escreviam títulos no tempo em que eram escritos à mão – merece uma leitura atenta. Principalmente por seus problemas.
O que o texto das associações das empresas de mídia tem de melhor é a crítica à ‘descoordenação das autoridades federais e estaduais na questão da segurança pública’, pela qual ‘o Brasil está pagando caro demais’, e a exortação a que o assunto ‘esteja no centro do debate eleitoral, porque é o centro das preocupações de todos os brasileiros’. Desconte-se esse hiperbólico lugar-comum ‘todos os brasileiros’, cujo parente mais próximo é ‘a sagrada missão de informar’ dos meios de comunicação, no parágrafo que vem em seguida.
A propósito, pena que o baronato da mídia tenha resolvido levar a crítica e a exortação a campo, no seu horário e espaço mais nobres, só depois do sequestro de dois profissionais da Globo. Como se antes disso a população não estivesse ‘na condição de refém das organizações criminosas’, segundo o prolixo documento – típico das manifestações cujos autores acham que têm tanta coisa a dizer que poucas palavras não bastam. Mas passemos.
O que o texto tem de pior é o refrão de que o crime nas ruas põe em jogo ‘a própria sobrevivência da sociedade democrática’. Falso. É o equivalente a afirmar que a democracia no Brasil está indo para o brejo por causa do desgosto difuso com a política e os políticos, depois do mensalão, dos sanguessugas e da corrupa em geral.
Pelo menos para presidente, governador e senador, segundo as pesquisas, a proporção de votos nulos e brancos não deverá ser maior do que na média das eleições anteriores. Além disso, não existe a mais remota condição objetiva para um soluço autoritário. Nenhum setor da sociedade prega a (re)implantação de um regime de força, seja contra a corrupção, seja contra o crime organizado.
A mera idéia de terem que mandar abrir os portões dos quartéis para combater o PCC, por ordem do comandante-chefe das Forças Armadas, o presidente da República, já deixa os generais com urticária. E por tudo isso ninguém, salvo os ínfimos e teratológicos Bolsonaros de sempre, aparece para liderar um movimento golpista. Tanto assim que, na ordem das coisas, eles pesam menos do que uma pluma.
Pensando melhor, a posição do manifesto não equivale à crendice de que a corrupção ameaça a democracia. É mais grave. Porque implicitamente dá ao PCC o que os seus chefões mais pretendem: o status de um movimento político legítimo em defesa dos oprimidos pelo sistema carcerário, que a contragosto recorre a atos extremos, para que os de fora, a começar das autoridades, se liguem no inferno do cotidiano lá dentro.
Ainda bem que, na Folha, ao virar a página que contém o manifesto, topa-se com um irretocável editorial – com uma contundência incomum para os padrões do jornal – intitulado ‘Farsa da politização’, assim resumido: ‘Facção criminosa tenta esconder face mafiosa com discurso ‘político’; público e autoridades não devem cair na armadilha.’
Diferentemente do que sustentam os donos da mídia, deve-se combater o PCC e a bandidagem em geral com o máximo de rigor e inteligência, dentro da lei, não porque a democracia está a perigo. Esse é um argumento pobre, além de equivocado, como tentei demonstrar.
Deve-se enfrentar a delinquência sem descanso porque ela faz da vida dos brasileiros das grandes cidades algo ainda mais difícil de suportar do que a barbárie ‘normal’. E o manifesto ainda vem falar em ‘cotidiano civilizado’, que teria deixado de existir desde o advento da indústria do crime.
Em suma, não é porque a democracia brasileira é mais forte do que a degradação da política e o dia-a-dia impregnado de medo, que se deveria dar mole aos Marcolas.
Outro equívoco do texto – revelador como um ato falho – é o uso da expressão ‘ordem pública’ e do seu antônimo ‘desordem’, em vez de ‘segurança pública’ e ‘insegurança’.
Historicamente, invocava-se a defesa da ordem pública (ou o seu ‘resgate’, como diz o manifesto), como um breve contra os movimentos sociais. No passado, ainda não tão remoto no caso do Brasil, os porta-vozes do Capital clamavam pelo restabelecimento da ordem pública quando irrompiam greves fortes, por exemplo. Ou seja, pediam que a polícia sentasse a pua nos ‘desordeiros’ – ou ‘subversivos’.
Não é exatamente a ordem pública que está ameaçada aqui e agora. É a segurança das pessoas, o patrimônio privado e bens públicos. Não é pouco, mas não é o que o manifesto diz que é.
Por associação de idéias com a folha corrida do termo ‘ordem pública’ chego, por fim, à passagem do texto onde se lê que ‘a imprensa sempre esteve alinhada às grandes causas da cidadania’.
Sempre, modo de falar. Há 40 anos, a mesma imprensa que vem pregar ‘a consolidação da democracia em nosso país’ fechou com o golpe liberticida que derrubou em nosso país um governo constitucional. E até o golpe dentro do golpe que foi o AI-5, de dezembro de 1969, a ‘imprensa sadia’, como ela se qualificava, continuou a somar com a ditadura.
O único jornal importante que logo viu o que tinha ajudado a aprontar com os seus editoriais de primeira página ‘Basta’ e ‘Fora’, pedindo a cabeça do presidente Goulart, e se virou contra a gorilada dias depois, foi o grande Correio da Manhã. Quando a ditadura passou a asfixiá-lo financeiramente, nem o Estado, nem o Globo, nem o Jornal do Brasil, nem a Folha soltaram um pio de protesto.
‘Basta à violência.’, sim. Mas com o foco certo e sem pretensões à santidade.
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