Tomemos, aleatoriamente, um exemplo da semana que passou. Uma entrevista aparentemente comum na página A8 do Estado de S.Paulo, publicada na segunda-feira (24/1). Diz o título: ‘Infectologista da UFRJ ataca quebra de patente’, e segue uma entrevista com o médico, já na abertura qualificado como ‘membro da elite de pesquisadores em Aids no País’. Em resumo, ele procura desqualificar a proposta do Ministério da Saúde de exigir o licenciamento de medicamentos anti-retrovirais, a base do tratamento da Aids, afirmando que, entre outros prejuízos, a rede hoteleira do país correria o risco de perder receita produzida por seminários e outros eventos patrocinados pelas empresas do setor.
O entrevistado alinha seus argumentos e a repórter ouve opiniões opostas. Tudo conforme os manuais do bom jornalismo. Apenas por um detalhe: a reportagem omite que o pesquisador tem relações profissionais com a indústria farmacêutica, que regularmente utiliza seus préstimos para seminários e outros eventos patrocinados, nos quais, evidentemente, são destacadas as qualidades dos produtos fabricados pelos patrocinadores.
O entrevistado defendeu suas opiniões e seus interesses, e declarar ou não a condição que o liga à indústria de medicamentos seria questão de foro íntimo. Cabia à jornalista informar o leitor sobre esse vínculo – e é disso que estamos falando, do vício de camuflar ou ignorar elementos essenciais à compreensão da notícia, como possíveis conflitos de interesse do entrevistado. É o caso, quase anedótico, mas tristemente comum, em que o repórter pergunta ao advogado do réu: ‘Seu cliente é culpado ou inocente?’
O leitor ludibriado
No caso da exposição pública de informações médicas ou científicas, torna-se regra a exigência de que os palestrantes em eventos de saúde identifiquem seus vínculos de interesse antes de iniciar suas palestras.
Uma das poucas especialidades em que essa prática ainda não pegou, aqui no Brasil, é justamente a infectologia. Os cardiologistas, por exemplo, têm como praxe afirmar, antes de qualquer pronunciamento público: ‘Minha pesquisa foi financiada pelo laboratório tal’, ou ‘minha pesquisa não foi financiada com recursos privados’. Segue-se, então, o comunicado, com o público habilitado a abstrair os possíveis interesses não-científicos envolvidos.
O caso citado, colhido aleatoriamente do noticiário geral, representa de maneira simples um vício que se agrava na imprensa brasileira, e que nem sempre é percebido pelo leitor, por algumas razões que podemos alinhar em seguida. Uma delas é a editorialização do noticiário: se temos dois cientistas que apóiam determinado projeto do governo, e o jornal, por premissa, é contra, vamos destacar na abertura e no título o outro cientista, aquele que critica o projeto.
Outra razão é a perda progressiva de certa cultura jornalística, que buscava colocar um fiel na balança das possibilidades pela simples e preventiva medida de explicitar possíveis conflitos de interesse envolvidos na notícia.
Os leitores mais qualificados, ou aqueles mais próximos do tema tratado, percebem esses vícios mesmo numa leitura superficial, e nisso está uma das raízes da perda de credibilidade da imprensa. Os leitores atentos ou mais críticos se sentem ludibriados, mas os gestores da imprensa não parecem preocupados em perder esse público. Na verdade, a imprensa está atrás de quantidade, na ilusão de que o volume maior de leitores trará de volta a publicidade que escapou para outros meios.
Opção preferencial
Essa é a provável origem de um fenômeno fácil de perceber, já comentado neste espaço por outros observadores: nossos jornais – e a maioria das revistas de informação – estão falando para públicos cada vez mais homogêneos. Essa constatação é mais óbvia no noticiário político, onde se observa claramente o propósito de consolidar premissas dos editores em qualquer circunstância, ou melhor, seja qual for o fato, ele sempre estará sendo usado para ‘confirmar’ as premissas pré-existentes nas cabeças coroadas da redação, esteja-se tratando de uma disputa pela presidência da Câmara ou da compra de um avião para a presidência da República.
Não se trata de ocorrência recente, também perceptível em certa fase do governo Fernando Henrique Cardoso, mas muito mais evidente no noticiário sobre o atual governo. Da mesma forma, as omissões são um recurso corriqueiro para o direcionamento da interpretação do texto, quando, por exemplo, um jornal qualifica um entrevistado ou um articulista dizendo que ele é ‘escritor, pintor, ensaísta, bailarino e ator’, mas esquece de dizer que se trata de um ex-deputado – escondendo o que de fato é importante, ou seja, que suas opiniões são condicionadas pela vinculação partidária.
Se nossa imprensa não parece preocupada, sistematicamente, com o contraditório, quando se trata de certos temas definidos em suas premissas, seus gestores estão na verdade declarando que fizeram uma opção preferencial pela homogeneidade do público. A omissão de conflitos de interesse é parte dessa receita, que vai conduzindo progressivamente os jornais e revistas a se transformarem em porta-vozes de tribos políticas específicas, geralmente conservadoras.
Quando perde a capacidade de representar a diversidade natural da sociedade, a imprensa perde valor. Quando opta por agradar apenas àqueles que se identificam com suas premissas, a imprensa está encurtando seu futuro.
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Jornalista