Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por que a idéia do complô não funciona

Minhas precárias férias, que deveriam durar até o dia 12 de novembro, foram interrompidas. Andei fora, não li jornais nos últimos dias. Escrevo a partir do que observei até a véspera da eleição.


Antes, transcrevo alguns entre comentários importantes feitos a respeito de falas ou textos de Alberto Dines. Ele costuma responder não diretamente aos leitores, mas com novas falas e textos. Não sei se terá tempo de fazê-lo agora, porque está às voltas com os preparativos para uma viagem que fará em breve. Uma versão de seu livro Morte no Paraíso – A Tragédia de Stefan Zweig (Tod im Paradies – Die Tragödie des Stefan Zweig, traduzido do português por Marlen Eckl) foi lançada na Alemanha. Ele foi convidado a falar lá sobre seu trabalho.


Não respondo por ele, apenas pego carona em alguns comentários de leitores, reproduzidos a seguir.


Rosana Aquino, Fortaleza:


“O que vc chama de ´linchamento digital´ não é nada novo, foi posto em prática contra petistas desde que estourou o chamado escândalo do mensalão: scrap books, blogs e e-mails petistas eram diariamente infestados de agressões. A Folha de S. Paulo durante toda a campanha chamou os nordestinos de maus eleitores, despreocupados com a ética, e que vendiam seus votos em troca do bolsa-família. Partidários do PT tiraram seus brochinhos para poder andar na rua sem medo de apanhar. Mas tudo isto é ´besteira´ e ´parte do processo´ até que… tcham, tcham, tcham, tcham: aconteceu com os jornalistas. Tudo o que acontece contra os jornalistas vira coisa de outro mundo. Da mesma forma, as condições em que foram feitos os depoimentos dos jormalistas da Veja na PF ganharam megaproporções. Os coitados foram intimidados! A liberdade de imprensa está em perigo! Cuidado, cuidado! Ninguém quer saber como foram feitos os depoimentos na PF das pessoas que atacaram o PT? E as CPIs? Ninguém se preocupa com as agressões durante os depoimentos nas CPIs? Ainda não, mas espera um jornalista ser humilhado em uma CPI…”


Aqui temos um lado pouco conhecido (pelo menos para mim) da história: indicações sobre a guerrilha político-ideológica travada no ambiente virtual. Não creio que isso tenha sido suficientemente noticiado. Mas não há “bonzinhos” nessa história. Sem ilusões.


A leitora tem razão quando critica a falta de humildade da mídia (faz parte do negócio mostrar-se afirmativo, seguro), mas se engana, a meu ver, quando subestima a denúncia de possíveis ou supostas arbitrariedades policiais contra jornalistas da Veja. É verdade que a mídia reage com indignação infinitamente menor quando um pobre coitado é espancado pela polícia na periferia. Aliás, não reage. Nem noticia. E quando noticia surgem surpresas. Tempos atrás o Globo teve que enfrentar uma tempestade de críticas porque deu destaque a uma fotografia em que PMs do Rio de janeiro espancavam um rapaz já dominado, caído no chão. Leitores se indignaram. Acharam que denunciar a truculência policial poderia funcionar contra a segurança da sociedade. Como se a truculência policial não fosse parte intrínseca da insegurança. Atualmente os jornais, que já não davam os nomes dos mortos nos fins de semana, não dão nem mais o número de mortos. É como se essas vidas não valessem nada para a sociedade. Um terrível erro, pelo qual todos pagamos caro hoje e ainda pagaremos caro no futuro.


Mas se a liberdade de imprensa for de algum modo afetada, haverá então ainda menores possibilidades de mostrar essas e outras realidades. Daí ser relevante preservar a integridade profissional e pessoal dos jornalistas. O que não pode servir para eximi-los de críticas, nem de processos na Justiça. Eu, quando vejo uma barbaridade cometida pela mídia ser punida com multa pesada, comemoro. Esse sistema pode não ser o ideal, mas os outros são piores.


Quanto às CPIs, a leitora tem razão. O espetáculo falou mais alto e a mídia raramente condenou a prepotência de interrogadores que, para dizer o mínimo, em alguns casos não tinham atributos morais e biográficos para questionar ninguém. Mas foram eleitos e exercem suas prerrogativas. Novamente, o sistema está longe de ser o ideal, pode e deve ser melhorado, mas suprimi-lo seria um retrocesso. Deve-se levar em conta, como atenuante, que as CPIs representavam algum tipo de esperança cívica contra o cinismo governista.


Wladson Dalfovo, Florianópolis:


“Desculpe, meu senhor, mas o que existe é uma verdadeira onda antidemocrática, como pude observar aqui no Sul do país, onde os jornais são totalmente parciais e que vão contra nosso país, o Brasil, através de editoriais clamando pelo conservadorismo político. Nenhum meio de comunicação aqui no Sul é confiável em relação às informações, sendo o único canal confiável a internet. Estes e-mails ofensivos talvez sejam a indignação dos brasileiros com jornalistas perante um autoritarismo midiático dos principais jornais e tv abertas do Brasil.”


Muito interessante receber essas manifestações que denunciam a falta de liberdade de imprensa fora de São Paulo ou do Rio. Nessas duas cidades existe considerável liberdade de imprensa, para os padrões brasileiro e mesmo internacional (chutando: 7, numa escala até 10, em São Paulo, e 6 no Rio, onde a Rede Globo e o Globo imperam praticamente sozinhos), mas fora delas não existe. A escala vai caindo, até tender ou chegar a zero nas pequenas cidades onde o prefeito e/ou algumas famílias políticas poderosas mandam e desmandam, demitem, prendem, mandam bater em jornalistas, enxotá-los ou matá-los. No caso em pauta (Florianópolis) o que não existe é variedade. A mídia é monopolizada, ou oligopolizada.


Em vários tópicos ao longo dos últimos meses procurei mostrar como foi discretamente noticiada em Porto Alegre, e praticamente ignorada em Pelotas e região, a acusação de participação do (ainda, mas não reeleito) deputado federal Érico Ribeiro, do PP do Rio Grande do Sul, um fazendeiro e empresário muito rico, no escândalo das ambulâncias. Ele era, entre outras coisas, vice-presidente do Centro das Indústrias do Rio Grande do Sul e tinha sido vice-presidente da Federação das Indústrias (Fiergs).


Alvaro Marins, Rio de Janeiro:


É simplesmente ridículo a grande mídia se autovitimizar depois da derrota acachapante que a sua coligação sofreu nas urnas. Acredito que ela só tenha duas opções. Uma é revisar sua linha editorial e tentar ser um pouco mais respeitosa com a verdadeira opinão pública (não a publicada). Acho difícil que adote essa opção. Isso implicaria numa revisão ideológica de grandes proporções e setores expressivos da nossa sociedade (banqueiros, grandes latifundiários, multinacionais e grandes industriais) não admitiriam isso. A cumplicidade da mídia é fundamental para a defesa diária de seus interesses. A segunda opção é a que me parece mais provável: continuar a afirmar esses interesses de forma dissimulada, sempre demonizando o PT ou qualquer um que perceba o jogo da grande mídia e o desmascare. Esperar que ela assuma publicamente a sua parcialidade ideológica é ingenuidade, pois a máscara dissimulada da imparcialidade é que lhe garante a eficácia manipuladora sobre sua audiência. Se ela assume sua parcialidade, essa mesma audiência desconfia da seletividade de suas informações e o uso de dois pesos e duas medidas em suas abordagens. O problema atual da grande mídia é justamente esse. Durante as eleições, por ter se desesperado e apostado no tudo ou nada, a máscara da imparcialidade caiu e deixou a grande mídia nua em praça pública. E essa nudez, sempre oculta, foi vista fartamente.”


Sugiro ao leitor que repasse as manchetes dos dias que precederam a votação e que davam vitória praticamente certa para Lula. O raciocínio esquemático é atraente, mas não leva muito longe.


Volto à questão do complô.


A idéia do complô é errada e perigosa, porque será usada por forças que têm uma concepção pouco democrática do caminho para valorizar a função pública dos meios de comunicação. Forças de esquerda e de direita.


Houve exageros e erros, sem dúvida, existem veículos que desfraldaram bandeiras ideológicas, com ou sem aspas, como Veja e Carta Capital, para dar dois exemplos mais flagrantes, ou mesmo o Estadão, que ficou algo caricato, mas o balanço da mídia é positivo num processo em que o governo e o PT, pilhados em flagrante, usaram um cinismo muito grande. Em particular o presidente Lula, a máxima figura pública da nação, que disse, deseducativamente, ter o PT feito aquilo que ‘todo mundo faz’. Por sinal, quem veiculou essa declaração (dada em Paris para uma jornalista free-lancer) foi a Rede Globo. Sem criticar o absurdo que veiculava. Será que a Rede Globo faz ou fazia naquele momento parte de uma conspiração governista?


A maioria não votou em Lula porque desculpa os malfeitos de seu governo e de seu partido. Votou porque ele ofereceu mais esperança. Por sinal, uma função magna dos governantes.



O PT historicamente usou e abusou dos defeitos da mídia e acabou se enrolando nessas práticas. Pagou seu preço. A oposição, que tem trezentos rabos presos, foi de uma incompetência espetacular. Teve o que mereceu. E não vejo no horizonte o anúncio de alguma elevação dos padrões da oposição – nem da situação –, porque a lógica do sistema eleitoral e partidário conduz na direção oposta, quer dizer, na direção de ficar tudo como está.


A mídia trabalha com contrastes fortes. O bem e o mal. Se não se dispõe de heróis para contrapor aos vilões (houve tentativas; lembram-se de Delcídio Amaral, Osmar Serraglio, Jefferson Peres?), parte-se para a batalha com as mãos nuas. A imprensa colocou a cara perante o governo e a opinião pública e apanhou. Mas não porque apostou suas cartas na eleição de Alckmin e ele foi derrotado. A mídia está sendo criticada mais por suas virtudes – contrapor-se ao discurso oficial, que é muito poderoso, salvo na véspera das grandes debacles – do que por seus muitos pecados, alguns dos quais são agora apontados com propriedade pelos leitores, como o são há dez anos e meio neste Observatório.


Toda essa explosão de visão crítica a respeito da mídia merece comemoração. Em 1996 o Observatório da Imprensa era uma tribuna quase solitária. Em 1975-77 Alberto Dines, no Jornal dos Jornais (Folha de S. Paulo), era uma voz ainda mais solitária na crítica da imprensa. Hoje muita gente participa dessa conversa, às vezes acalorada, sempre trabalhosa, como todo debate sério, mas rica.


Isso dito, temos ainda o seguinte:


1) Todos os veículos cometeram erros maiores ou menores. É preciso estudar os casos em detalhe, sem generalizações, que não ajudam a entender nada. É preciso examinar cada evento ou processo importante e como ele foi noticiado (não comentado) em cada um dos veículos mais importantes. Esse será o ponto de partida para uma síntese útil, e não partir de generalizações feitas com base numa primeira impressão e depois constatar que os fatos não correspondem à construção teórica.


A sociedade brasileira, no momento, não dispõe de instrumentos adequados para isso. Mas pessoas e instituições terão de criá-los – melhor dizendo, ampliá-los e aprimorá-los, porque já existem –, a menos que, ao fim e ao cabo, desistam e se contentem com a mídia tal como chegou até aqui e com o estado ainda precário da democracia brasileira.


Não será possível basear-se na participação espontânea e desorganizada dos cidadãos. Ela é fundamental, mas não garante a produção de sínteses consistentes.


2) Toda a mídia está submetida a um processo de mudança de dimensões até aqui apenas vislumbradas. Reproduzo trecho de um artigo que escrevi há um mês para o jornal do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro:


Os jornalistas são hoje testemunhas e protagonistas do fim de um ciclo em sua atividade. Todos os meios de comunicação foram sacudidos por mudanças tecnológicas com profundas repercussões sociais. O fenômeno mais abrangente é a perda da posição de cátedra desfrutada historicamente pela mídia. Como dizem alguns, daqui em diante o jornalista vai cada vez mais conversar com o leitor, não dar aula.


Isso se deve ao advento da internet. Mas afeta toda a cadeia da comunicação. Porque os veículos tradicionais não podem mais ignorar o que se produz e se dissemina – a custo zero; atenção, refiro-me à disseminação, não à produção – pela rede.


Em alguns anos, o avanço da banda larga reduzirá crescentemente o papel das redes de televisão aberta (e fechadas, também). Como as empresas que detêm essas concessões são tudo menos bobas, elas procurarão se colocar em posição vantajosa no novo território, hoje dominado no Brasil por três grandes grupos de telefonia.


O rádio não poderá ignorar a esfera digital. Ao ouvinte será dado escolher a hora da audição. Também será mais econômico jogar o áudio pela internet (para recepção por celulares ou seus sucessores) do que comprar e manter equipamentos de radiodifusão.


A digitalização poderá poupar custos de papel, impressão e distribuição de jornais e revistas. O que os executivos da imprensa farão com esse dinheiro ainda não se sabe. Se tiverem juízo, investirão na qualidade jornalística do conteúdo.


A maior mudança se chama telefone celular (que se torna cada vez mais poderoso).


Veja-se o caso do jornal. Hoje, o editor tem espaço finito (para diagramação) + rede e horário de distribuição. É uma articulação espacial rígida, com prazos idem. No contexto digital, o espaço é “ilimitado”, a rede de distribuição idem (e permanente) e há grande maleabilidade temporal.


Mas para o leitor a relação é inversa. Havendo luz, natural ou artificial, ele tem muito mais liberdade de ação com o texto (ou a imagem) no papel do que na internet.


A telefonia móvel (chamemo-la assim, provisoriamente) dará ao leitor tanta liberdade para ler quanto o meio digital dará ao jornalista para editar.


Caberá aos periódicos ou buscar a profundidade e a capacidade de articulação dos fatos, ou ficar falando sozinhos para pessoas que já sabem o que eles vão imprimir”.


A quem teve a paciência de chegar até o fim da citação, recomendo a releitura do primeiro parágrafo. Para facilitar, repito-o: “O fenômeno mais abrangente é a perda da posição de cátedra desfrutada historicamente pela mídia. Como dizem alguns, daqui em diante o jornalista vai cada vez mais conversar com o leitor, não dar aula”.


É disso que estamos falando. E se ficássemos na teoria pobre do complô da mídia, continuaríamos a reboque dos acontecimentos, supondo ingenuamente que de alguma maneira os estamos conduzindo.