Pela primeira vez a comunicação foi um dos espaços temáticos do Fórum Social Mundial, sob o título ‘Comunicação: práticas contra-hegemônicas, direitos e alternativas’. Nas quatro edições anteriores do Fórum, o tema esteve diluído em várias discussões e não recebeu a atenção que merece se considerarmos a centralidade e a importância política, cultural e econômica que alcançou nas sociedades contemporâneas.
Durante quatro dias consecutivos, em Porto Alegre, foram realizados seminários, mesas-redondas, painéis e oficinas nos quais se tratou de questões que incluem conteúdo da mídia, formas alternativas de comunicação, responsabilidade dos jornalistas, democratização da mídia, rádios populares, direito à comunicação, práticas contra-hegemônicas, software livre, formação do comunicador, multiculturalismo, ética e paz na mídia e observatórios de mídia, dentre outros.
Foram ao todo 112 atividades programadas, além de várias outras que não constaram do programa do FSM 2005. O próprio I Fórum Mundial de Informação e Comunicação foi realizado na terça-feira, 25/1 – antes, portanto, do início oficial do FSM.
Direito fundamental
Entre os promotores dessas atividades estavam desde entidades conhecidas por sua atuação internacional – como a CRIS (Communication Rights in the Information Society) ou o Media Watch Global – até organizações quase-anônimas como a ALICE (Agência Livre para Infância Cidadania e Educação), ou a Fundação Artemísia, ou o Programa Social Gotas de Flor com Amor.
O que resultou de todo esse conjunto de atividades?
O que mais impressiona ao observador é uma certa efervescência que o Fórum Social Mundial produz e que é muito difícil de se descrever. São milhares de pessoas do mundo inteiro, distribuídas em atividades simultâneas, em quatro turnos diferentes, ao longo de quatro dias consecutivos, discutindo questões ligadas à comunicação. Em que outro lugar existe isso?
Dentre as questões mais substantivas que foram tratadas quero destacar apenas duas. A primeira diz respeito à luta pela democratização da comunicação e, a segunda, à formalização do Observatório Brasileiro de Mídia.
O principal paradigma conceitual que tem orientado boa parte dos segmentos organizados da sociedade civil comprometidos com o avanço na área de comunicação, não só no Brasil, tem sido sua democratização. Uma das falácias dessa construção discursiva é que ela indica a possibilidade de que a grande mídia hegemônica, privada e comercial, seria passível de ser democratizada. Isso equivale a acreditar que os grandes conglomerados de mídia abririam espaço para a pluralidade e a diversidade de vozes de nossa sociedade.
Entidades como a CRIS, seu capitulo brasileiro, a CRIS-Brasil e o Intervozes defenderam a necessidade de se ‘re-enquadrar’ a luta pela democratização na perspectiva de que o direito à comunicação é um direito humano fundamental e se expressa, sobretudo, através da criação de um sistema público de comunicação igualmente independente do Estado e da iniciativa privada. Esse re-enquadramento pode mudar os rumos de como essa luta tem sido conduzida até agora.
Balanço positivo
A proposta conceitual de um direito à comunicação não é coisa nova. Sua primeira formulação já tem mais de 30 anos. Também não é novo que entidades e movimentos sociais que lutam pela democratização da comunicação no Brasil inscrevam esse direito – direta ou indiretamente – nos seus programas de ação.
O novo é a retomada do conceito, apoiada numa articulação internacional, como foco principal da organização de movimentos e de propostas de ação e, além disso, vinculada à discussão concreta de um sistema público de comunicação.
Os obstáculos para o sucesso desse re-enquadramento não são desprezíveis. Em primeiro lugar, o direito à comunicação não logrou ainda o status de direito positivado. Isso não aconteceu nem mesmo em nível dos organismos multilaterais que têm a capacidade de provocar o reconhecimento internacional do conceito, como por exemplo a Unesco. Esse fato faz com que, simultaneamente à articulação política de ações específicas, se desenvolva também a luta pelo reconhecimento formal do direito.
Em segundo lugar, há históricas e poderosas resistências ao conceito, exatamente pelo poder que ele teria de abarcar, sob suas asas, um imenso leque de reivindicações e bandeiras em relação à democratização da comunicação. As questões da concentração da propriedade e da propriedade cruzada, certamente seriam duas delas. Mas, aparentemente, as entidades que promovem os debates estão conscientes dessas – e de outras – dificuldades e, mesmo assim, estão dispostas a ir em frente.
Quanto ao Observatório Brasileiro de Mídia, a idéia de um Media Watch Global nasceu no FSM 2001. A crescente concentração da propriedade no setor mostrou de forma inequívoca a necessidade de se criar um processo que pudesse acompanhar o cumprimento, pela grande mídia, dos compromissos que ela própria sempre anunciou como seus: servir ao interesse público, à pluralidade, à diversidade, ouvir os dois lados das questões, ter responsabilidade social, dentre outros. A partir de então, capítulos do Media Watch Global foram criados na França, na Itália e na Venezuela.
Um grupo de jornalistas, professores e pesquisadores de comunicação, em associação com a Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, fundou o capítulo brasileiro no final de 2004: o Observatório Brasileiro de Mídia (OBM). Num país como o nosso, que apesar do trabalho pioneiro deste Observatório da Imprensa ainda tem pouca tradição de media criticism, e onde a mídia não tolera críticas nem qualquer forma de controle social – a criação de um observatório permanente nos moldes do Media Watch Global é uma forma de contribuir para o amadurecimento de uma consciência crítica dos interesses que presidem o agendamento público de temas e o enquadramento das coberturas, longe da retórica da objetividade jornalística.
Para um espaço temático que, pela primeira vez, havia conquistado sua autonomia no FSM, o balanço final das atividades não poderia ser mais positivo. A Comunicação foi, inclusive, um dos espaços temáticos que atraiu maior número de pessoas. Isso faz com que renovemos nossa esperança de que, de fato, ‘uma outra comunicação é possível’.
******
Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª. ed., 2004); participou da cobertura do Fórum Social Mundial 2005, em Porto Alegre, para a Agência Carta Maior (http://agenciacartamaior.uol.com.br)