A Folha da quinta-feira, 30, embocou a promulgação da lei que regulamenta a atividade de mototaxista do ângulo das inquietações que o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, já tinha manifestado quando da aprovação do projeto no Congresso, no começo do mês – e tornou a manifestar no mesmo dia em que o presidente Lula o sancionou.
Os motivos do ministro e dos profissionais da saúde em geral são evidentes. Hoje, rodam nas cidades brasileiras 500 mil mototáxis. Eles transportam diariamente algo como 10 milhões de passageiros. Com a regulamentação, esse número deve dobrar. Acidentes graves com motos são uma rotina na paisagem urbana do país. Em média, morrem 19 motoqueiros (ou vítimas deles) por dia.
O enfoque da Folha parece apropriado, mas não leva em consideração um dilema a que nenhum governo está imune: que fazer diante de uma prática irregular, ou ilícita, quando ela não pode ser reprimida, pelo simples fato de envolver um número imenso – e crescente – de pessoas.
Olhar para o outro lado, ou tirar a prática da ilegalidade? De um modo ou de outro, a atividade aumentará. A diferença é que, na segunda hipótese, existe, ao menos em teoria, a chance de controlar os seus malefícios, pela intervenção do Estado, mediante regulamentação e fiscalização.
No caso da nova lei: os mototaxistas, com idade mínima de 21 anos, terão de ser habilitados há pelo menos dois e precisarão ser aprovados em cursos especiais estabelecidos pelo Conselho Nacional de Trânsito.
Entre o vale-tudo que está aí e o controle instituído, o governo ficou com a esperança de que pior não haverá de ficar, existindo ainda uma possibilidade imponderável de melhorar.
“Não podemos fechar os olhos à realidade”, disse, caracteristicamente, o ministro das Cidades, Mário Fortes. “Essa atividade já existe e precisava ser regulamentada.”
Claro que os governos não lidam com esse tipo de dilema em abstrato. As escolhas que acabam fazendo refletem ideias, sim, mas, principalmente, o potencial de influência dos interessados. E isso deveria ser um prato quente para a imprensa.
A história dos bastidores do projeto dos mototáxis, no entanto, foi esquecida pelos jornais. Presume-se, pela sua transformação em lei, que as pressões da Saúde contra a legalização do serviço pesaram menos do que outras, mas quais? Será que a entidade que representa os mototaxistas e os motoboys – “motofretistas” – tem tanta bala assim na agulha? E os fabricantes de motos, um setor industrial e tanto, fizeram o quê?
Os médicos bem que tentaram. O Hospital das Clínicas, lê-se na Folha, tratou de produzir um levantamento segundo o qual, nos últimos três meses, metade das vítimas de acidentes de trânsito andava de moto – e as motos são apenas 12% da frota circulante na cidade de São Paulo.
A posição dos autores do estudo é de que a lei fará aumentar o total de vítimas, não haverá recursos para dar conta do seu atendimento e, no final, vai sobrar para os pacientes da rede.
“O sistema de saúde já está estrangulado”, diz a doutora Júlia Greve. “O motoqueiro que chegar em estado grave vai roubar a vaga de alguém que estiver menos grave.”
E, numa comparação discutível, alerta que “a despesa com um só motoqueiro acidentado pode ser suficiente para tratar mais de mil casos de gripe suína.”
Já o presidente da associação nacional dos motoqueiros, Robson Alves, se limitou a dizer – ou foi citado como tendo dito apenas o seguinte: “A regulamentação já estava passando da hora. São mais de dez anos de luta. Ser reconhecido é o mais importante.”
Não custava nada provocá-lo com uma pergunta sobre a importância dos possíveis reflexos da lei para a segurança das pessoas e o sistema de saúde pública. Ou, para sair da pista dos conceitos, poderiam ter pedido que contasse no que consistiu ultimamente a tal da luta: o que ele e o seu pessoal fizeram junto aos políticos e no Executivo ao longo deste mês.
Como são feitas as leis costuma ser mais revelador do que a notícia de sua criação. Mas raramente a imprensa vai atrás daquilo que, no fim das contas, é um retrato do funcionamento do poder e da exposição dos que o exercem a interesses organizados – legítimos ou suspeitos.
A esta altura, o eventual leitor já terá pensado num dilema (que por sinal também mexe diretamente com a saúde pública) da mesma família desse dos mototáxis, guardadas as infinitas diferenças de escala, complexidade e grau de polarização que provocam.
É a questão da droga.
Como diria no outro caso o ministro das Cidades, “não podemos fechar os olhos à realidade”. A realidade a que nenhum governo pode fechar os olhos é, de um lado, o fracasso mundial da repressão ao tráfico de entorpecentes, e, de outro, o aumento continuado do seu consumo.
Na grande imprensa internacional, a revista britânica The Economist é conhecida por sua solitária posição em favor da liberação generalizada das drogas – e não apenas da maconha. Para ela, a descriminação e regulamentação desse comércio dariam um golpe de morte nas máfias que controlam de ponta a ponta o negócio. Isso compensaria os custos humanos e sociais da provável expansão do seu uso. (A revista aliás prevê que, com o tempo, a tendência seria de estabilização.)
Não se sugere, naturalmente, que a imprensa brasileira tome partido nesse debate. Mas, se o expuser como deveria, descreverá o que parece ser o maior dilema que assombra os governos em quase toda parte – e que, mais dia, menos dia, baterá às portas do Planalto.
Isso sim é que é ôba-ôba
Nenhum jornal ou revista saiu com tantas matérias exclusivas sobre os escândalos do Senado, em geral, e os do seu presidente, José Sarney, em particular, como O Estado de S.Paulo.
O Estadão foi o primeiro a dar a história dos atos secretos. O primeiro a revelar que são quase 40 os senadores envolvidos com o esquema. O primeiro a identificar os parentes de Sarney pagos pelo Senado e a mordomia do mordomo de sua filha. O primeiro a publicar que um neto dele operava com crédito consignado na casa. O primeiro a apurar que Sarney omitiu de suas declarações de bens à Justiça Eleitoral a mansão onde mora em Brasília. O primeiro a denunciar os desvios de recursos da Petrobrás na Fundação José Sarney. E, no furo mais espetacular de todos, o primeiro a divulgar as fitas em que Sarney aparece tratando da nomeação do namorado da neta.
Parabéns, salva de palmas.
Mas o jornal não precisava lembrar o leitor de suas proezas praticamente a cada matéria sobre a crise do Senado, dia sim, o outro também. Hoje, por exemplo, o Estado se cita sete vezes em quatro matérias – além de reproduzir, em escala reduzida, cinco de suas páginas, em um infográfico sobre os pedidos de investigação contra Sarney no Conselho de Ética.
Assim: “o Estado revelou que…” (duas vezes), “após o Estado revelar que…” (duas vezes), “Conforme o Estado antecipou…”, “…foi revelado pelo Estado”, “A revelação pelo Estado…” Haja.
Lá pelos anos 1950, quando a grande maioria dos redatores do Estadão decerto não tinha nascido, a Gazeta Esportiva, de São Paulo, adotou o slogan “Ôba, ôba, isso sim é que é jornal”.
Daí entrou para o léxico do ofício a expressão “ôba-ôba”, como sinônimo depreciativo de elogio em boca própria.
Na Gazeta Esportiva era engraçado.