Consagrada pelo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, a definição para a palavra ‘fato’ não deixa dúvidas nem admite muitas variações: fato é ação, coisa feita, acontecimento, episódio. O que é verdadeiro, real. Por meio da investigação tenaz, da observação atenta e da apuração rigorosa realizadas por profissionais da imprensa, o fato ingressa no universo do jornalismo, convertendo-se em notícia. Para tanto, pela regra clássica, ele deve ser atual e relevante.
Já a palavra ‘factóide’, de acordo com alguns, teria surgido para significar ‘um fato carregado de imagem’, ou ainda para expressar a situação em que ‘o fato é uma imagem’. O termo teria sido concebido para explicar algumas práticas políticas motivadas pela percepção de que, na sociedade do audiovisual, só é notícia o que aparece na televisão, veículo que seduz por meio de cenas espetaculares. Com o passar do tempo, entretanto, esse conceito perdeu força e a acepção de ‘factóide’ como ‘pseudo-fato’ se consolidou como a mais importante.
Por isso, factóide é entendido, por uns, como algo fictício ou não provado, mas apresentado como fato, para efeito de propaganda, e incorporado por insistente repetição. Para outros, ele corresponde a uma afirmação improvável que, de tanto ser repetida, acaba sendo aceita como verdade inquestionável. Ainda há os que acrescentam que factóide é algo divulgado com sensacionalismo, no propósito deliberado de gerar impacto diante da opinião pública e influenciá-la.
Divergências, contradições e lacunas
Seja qual for a definição que se adote para o vocábulo, o que o acompanhamento da cobertura jornalística feita pelos meios de comunicação tem mostrado é que o factóide nasce da decisão de criar uma fantasia verossímil, ou de distorcer um fato, dotando-o de aspectos que ele não possui, o que resulta, quase sempre, na produção de uma notícia enganosa. O factóide geralmente contém informações falsas, deturpadas, deslocadas, fora de contexto, vagas ou incompletas e é emitido para distrair, confundir, induzir a erro, ocultar ou iludir. Garimpar fatos é tarefa para os bons jornalistas. Lançar factóides é negócio distinto, que obedece a outros interesses.
O fato tem forma, tamanho e volume. O factóide não tem corpo definido, mas ganha, a cada momento, as proporções que forem convenientes. O grande problema é que o fato e o factóide têm aparência semelhante e são enunciados, em linguagem idêntica, pelas mesmas fontes. Como, então, distinguir um do outro?
Para descrever um fato, os bons jornalistas geralmente buscam a máxima fidelidade ao que os seus cinco sentidos foram capazes de apreender. Para organizar o seu discurso, os bons jornalistas se servem, naturalmente, do conhecimento que acumularam sobre as coisas, as pessoas, os vínculos entre elas e o contexto em que estão inseridas. Empregam seu raciocínio lógico e distribuem os eventos integrantes do fato em uma seqüência capaz de formar um sentido inteligível, acessível a todos e de rápida difusão. O tom adotado geralmente é equilibrado, sereno e sóbrio.
Os bons jornalistas acolhem e respeitam as múltiplas representações sociais sobre a realidade e as reúnem no mesmo lugar, apontando devidamente as divergências ideológicas e as falhas, contradições e lacunas no discurso de todos os personagens da matéria, o que é sinal de um comportamento democrático e pluralista muito saudável.
O militante ou o eleitor, ao invés do leitor
Os formuladores de factóides, por sua vez, não saem a campo para pesquisar os acontecimentos nem se incomodam com critérios como a veracidade ou a precisão. Trabalham nos escritórios das empresas de marketing, nos gabinetes da política ou nas redações. Traçam metas. Fabricam flechas para atingir alvos determinados. Têm inimigos que precisam ser derrotados. Atiram quantas vezes for necessário. Empregam amiúde a ironia e o ridículo para apresentar o perfil de suas vítimas. Também apelam para o preconceito e para os estereótipos, elementos que reduzem e simplificam o entendimento dos fenômenos complexos.
O factóide emite senhas que os militantes da causa que ele representa devem captar, traduzir e disseminar, para que seus objetivos sejam alcançados em menos tempo. O factóide é bem sucedido quando leva o público a alinhar-se a um ou outro tipo de pensamento ou conduta. O factóide faz exortações, lança slogans e palavras de ordem, muitas vezes de modo que poucos percebam. O factóide está a serviço da construção ou do fortalecimento de uma narrativa que quer conquistar corações e mentes. O factóide é um recurso dramático, que impressiona, e é feito sob medida para perdurar na memória. O factóide conta uma história fácil de ser entendida e… recontada.
O jornalismo deve repelir os factóides com veemência, sem hesitações. O jornalismo é o ofício e a arte de relatar o fato e de interpretá-lo. Quando se desvia de sua vocação essencial e se enreda em outras teias, segue por um caminho sinuoso, perde suas referências mais seguras e assume outro caráter.
Quando o jornalismo prefere o factóide ao fato, se arrisca a perder o seu mais importante capital: a relação de confiança com o público. Quando o jornalismo prefere o factóide ao fato, aposta na formação de outro tipo de interlocutor. Não quer mais o leitor. Prefere o militante ou o eleitor. Entra em campanha. Não quer mais informar. Acha melhor conduzir. Quer vencer e convencer. Quando o jornalismo prefere o factóide ao fato, deixa de ser jornalismo. Passa a ser lobby, publicidade ou ativismo político.
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Advogado, jornalista, mestre em Direito Internacional (UFMG) e doutorando pela Universidade Autônoma de Madri