Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Na Bolívia, o pior ainda pode estar por vir


Neste fim de semana, revistas e jornais parecem ter acordado para as dificuldades das relações do Brasil com vários de seus vizinhos. A exceção foi a Veja, que não tratou do assunto. No Globo – que enviou à Bolívia o repórter Chico Otavio –, no Estadão, na IstoÉ, na IstoÉ Dinheiro e na Época há material de boa qualidade, embora ainda insuficiente, especificamente sobre os últimos acontecimentos na Bolívia. De modo geral, fala-se pouco do que faz o Brasil incomodar o vizinho pobre com o qual tem a maior linha de fronteira (3.423 quilômetros). Luís Nassif abordou problemas importantes em sua coluna de sexta-feira (28/4) na Folha de S. Paulo – “empresas [brasileiras] arrogantes, com comportamento de velhas potências coloniais”. A Época tocou no problema da soja (“Há pelo menos 150 famílias de agricultores brasileiros que atuam legalmente no país vizinho. Os brasileiros são donos de 15% da área cultivada e estão incorporados à restrita elite local, Eles garantem um terço da produção de soja, o que não é pouca coisa, já que a soja é o principal produto agrícola boliviano”.) Mas ainda são abordagens tópicas e desarticuladas.


O professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Antonio Carlos Peixoto, coordenador-geral de relações internacionais do governo do Rio de Janeiro, critica a maneira como a imprensa brasileira cobre os assuntos internacionais. Acha que deveriam ser feitas nas redações listas de assuntos relevantes, país por país, que permitissem aos jornalistas não perder de vista os temas mais relevantes. Sugere também a realização de debates com especialistas em relações internacionais, cada vez mais numerosos no Brasil.


Peixoto mostra em entrevista ao Observatório da Imprensa, dada na quinta-feira (27/4), que, depois dos problemas com o petróleo e o gás – que, convém ter em mente, incomodam muito mais o governo brasileiro do que deixa transparecer o Planalto –, provavelmente virão outros ainda mais complicados. Segundo o professor da Uerj, os resultados da Constituinte a ser convocada por Evo Morales serão “uma caixa-preta”. Ele não descarta a substituição do sistema político dominante no Ocidente – democracia representativa baseada nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário – por uma fórmula “que tenha mais a ver com as raízes culturais indígenas do Altiplano”. Essa fórmula não seria aceita, notadamente, pelas forças dominantes no Departamento de Santa Cruz.


Eis a entrevista.


A mídia brasileira apresenta uma narrativa competente dos fatos na Bolívia?


Antonio Carlos Peixoto – Em relação à Bolívia, há duas questões. Uma delas tem sido aflorada, mas a outra, não.


A primeira é que existe uma percepção muito complicada, na Bolívia, em relação à Petrobrás. Ela é antes de mais nada de medo, de receio, porque a Petrobrás, como empresa, é maior do que a Bolívia [as receitas da Petrobrás chegaram a US$ 136,6 bilhões em 2005, quando o PIB da Bolívia foi estimado em U$ 23,7 bilhões, levada em conta a paridade do poder de compra]. Não há como evitar isto. Não há como mudar essa percepção na base do discurso:. “Não, não se preocupem, nós estamos aqui para fazer o bem”. É a mesma coisa, mutatis mutandis, que o Brasil tinha, nos anos 40, no início dos anos 50, em relação a certas empresas americanas. Para o nacionalismo brasileiro, elas eram assustadoras.



A crise não foi um raio em céu azul. Por que agora tanta surpresa?



A.C.P. – Isso não se colocou de maneira clara no momento em que novas concessões foram atribuídas à Petrobrás nos governos de Gonzalo Sánchez de Lozada, Goni Sánchez, e Hugo Banzer. Banzer dizia que gostava muito do Brasil, tinha muita admiração pela Petrobrás. Mas Banzer morreu, assumiu o vice, que fez uma gestão curta, vieram as eleições regulares, foi eleito Goni Sánchez [que já havia sido presidente, entre 1993 e 1997, antes de Banzer, anteriormente ditador da Bolívia, entre 1971 e 1978], e nesse momento aumentaram as pressões para que os acordos com a Petrobrás fossem revistos. Isso se dá num quadro de conflitos internos bastante intensos, que levam à renúncia de Goni Sánchez. Assume o vice, Carlos Mesa. Continua a pressão contra a Petrobrás de setores populares e de setores da elite boliviana. Mas o antagonismo à Petrobrás ficava diluído, porque aparecia no bojo de uma série de outras reivindicações extremamente conflitivas, que já tinham levado à deposição de Goni Sánchez e levaram à de Mesa. Não havia um foco específico em relação à Petrobrás.


Essas outras questões foram adiadas na medida em que o candidato das chamadas forças populares progressistas, Evo Morales, ganhou as eleições [18/12/2005]. Depois da posse de Morales [22/1/2006], o foco passou a incidir sobre as Petrobrás. Primeiro, em 2005 a Câmara dos Deputados da Bolívia havia aprovado uma lei que acrescentava 32% de impostos não dedutíveis aos royalties de 18%. Na prática, a parte paga ao Estado boliviano passou de 18% para 50%. Logo depois, vieram demandas de estatização do solo, dos recursos minerais, do gás, o que a Petrobrás não aceita, dizendo que nesse caso se tornaria uma empresa de serviços. Ao mesmo tempo há o anúncio da estatização de refinarias de petróleo que a Petrobrás construiu na Bolívia. Esses problemas agora aumentam de tamanho na medida em que não existem outros problemas de curtíssimo prazo a serem enfrentados por Evo Morales.


Qual é a próximas etapa previsível da crise na Bolívia?


A.C.P. – Essa situação deverá se manter até o mês de junho, porque em junho haverá as eleições para a nova Constituinte boliviana. O que, em si mesmo, no meu fraco entender, é uma prova de total ensandecimento, na medida em que existe um Congresso funcionando na Bolívia, eleito no ano passado, quando Evo Morales foi eleito presidente. Então, nós vamos ter o quê? Dois poderes legislativos na Bolívia? Um, a Assembléia Constituinte, que cuida de Constituição, e um outro Congresso, que vai legislar sobre o quê? Sobre leis ordinárias? Mas leis ordinárias que eventualmente vão entrar em conflito com uma Constituição que será promulgada não sei se no fim do ano, não sei se no início do ano que vem? O desatino é total.


Dessa Assembléia Constituinte ninguém sabe o que virá. Isso é uma caixa-preta. Até porque, até onde eu sei, os critérios da eleição não estão definidos. Não se sabe se será na base do “um cidadão, um voto”, ou se, ao lado disso, haverá uma votação por corporação. Lembremo-nos de que em 1971 foi convocada na Bolívia uma assembléia constituinte, no governo do general [Juan José] Torres, que, à semelhança do que acontecia no Peru do general Velasco Alvarado, foi considerado uma ditadura progressista, de esquerda, na América do Sul.


Foi convocada uma assembléia constituinte formada na base de delegados por corporação. Eu até conheci em Paris uma moça que era estudante naquela época, tinha 21 anos de idade, era uma manda-brasa danada, uma radical horrorosa, e foi eleita delegada constituinte pelo movimento estudantil, pela Universidade Mayor de San Andrés, a universidade pública da Bolívia.


A situação pode se deteriorar de modo bem mais preocupante?


A.C.P. – Ninguém sabe ainda se pelo lado da cidadania haverá delegados ou membros da constituinte eleitos corporativamente. E ninguém sabe quais são os segredos que essa constituinte encerra. Há quem diga, e eu não nego em princípio validade a quem pensa dessa maneira, que há um projeto em gestação de ruptura com o padrão ocidental do sistema de representação, e até do sistema político baseado nos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário. E que está se buscando na Bolívia um sistema de representação que tenha mais a ver com as raízes culturais indígenas do Altiplano.


O grave problema que existe em relação a isso – em relação à questão da Petrobrás, menos, apesar de que vai gerar problemas –, a essa guinada de 180 graus na engenharia política boliviana, fazendo com que ela seja baseada em conselhos de comunidades indígenas e camponesas, e sabe Deus o que mais viria atrás disso, se não entram também sindicatos mineiros e coisas do gênero, o problema é que o Departamento de Santa Cruz não aceita isso.


O que existe como empresariado na Bolívia, como um setor privado com interesses minimamente estruturados na mesa do jogo, está no Departamento de Santa Cruz. Uma cisão de Santa Cruz já esteve na ordem do dia, quando Carlos Mesa foi levado à renúncia.


Outras empresas brasileiras, além da Petrobrás, têm interesses na Bolívia.


A.C.P. – Sim. Mas a Petrobrás é de longe a mais forte.


Essa ameaça de secessão de Santa Cruz não seria colocada um pouco na conta do Brasil?


A.C.P. – Vai. Porque o vizinho de Santa Cruz é o Brasil. Inclusive porque Santa Cruz já se tornou há algum tempo uma área produtora de soja. Os produtores de soja de Mato Grosso simplesmente cruzaram a fronteira, como sempre aconteceu, no mundo inteiro, com a produção agrícola. Existe muito capital brasileiro na soja cruceña. Seria até interessante que alguém pudesse levantar qual é o investimento brasileiro no cultivo da soja de Santa Cruz [ver, acima, citação de reportagem da Época]. Madeira, também. Os interesses madeireiros de Mato Grosso estão cortando muita madeira na área de Santa Cruz. Essa empresa do Eike Batista [EBX] foi acusada, entre outras coisas, de promover desmatamento.


Não lhe parece que a mídia subestima sistematicamente a importância que todos esses problemas colocam para o Brasil? Certas questões são varridas para debaixo do tapete. Num momento em que os imigrantes clandestinos promovem grandes manifestações nos Estados Unidos, ignora-se, por exemplo, que as maiores taxas de tuberculose na cidade de São Paulo se verificam entre bolivianos que trabalham de modo praticamente clandestino e quase escravo em fábricas de roupas.



A.C.P. – O Brasil está numa espécie de encruzilhada. Nós sempre tivemos uma linguagem dupla, sempre houve dubiedade de nossa parte. De um lado, somos emergentes, um país pobre. De outro lado, sempre que podemos praticamos uma “maldade” contra os vizinhos. Lembre-se de Itaipu. O acordo com o Paraguai é leonino – para o Brasil, claro.


De modo crescente, na medida em que as empresas brasileiras se tornam mais fortes, se globalizam, vai acontecer que os “gringos”, em alguns países da América do Sul, passaremos a ser nós. Isso se tornou mais visível na Bolívia porque a Petrobrás se transformou numa empresa muito forte. Não foi listada recentemente como uma das cinqüenta e tanto maiores do mundo? Para eles, que lidam diretamente com a Petrobrás, o problema de avoluma.


Em outros países da América do Sul, a presença de empresas brasileiras muito fortes começa a despertar o velho fantasma do imperialismo brasileiro. Nós somos mais fortes do que eles, as nossas empresas são mais poderosas do que as deles, aconteceu o inevitável.


A diplomacia, que deveria ter feito um trabalho de acolchoamento para evitar que o impacto disso fosse mais forte, não fez. A diplomacia brasileira opera neste momento em três vertentes. A da articulação dos emergentes, nas rodadas de comércio internacional, a protagônica – querer eleger até papa brasileiro – e uma terceira, que é a da integração da América do Sul. Mas esta, a meu ver, está sendo mal conduzida, porque a diplomacia tem que lidar com este fato, diante do qual age como avestruz: que a integração da América do Sul, se ocorrer, será um processo no qual nós vamos levar sarrafada, porque nossas empresas tendem a se expandir cada vez mais na América do Sul.


A diplomacia está comendo mosca. Míriam Leitão (O Globo, 27/4) tem razão: a diplomacia brasileira confiou demais no discurso de Evo Morales.


Nós temos que articular bem essas duas linguagens: a de país mais forte, cujas empresas estarão cada vez mais presentes, e ao mesmo tempo de país emergente que articula as demandas dos emergentes. Ao lado disso vêm as malandragens. O Sr. Hugo Chávez, que tem um discurso a “my hermano Lula”, como tinha com Fernando Henrique, “my hermano Cardoso”, prejudica o Brasil na Bolívia porque quer expulsar a Petrobrás de lá e abrir espaço para a PDVSA (Petróleos de Venezuela S.A.). Prometendo a Evo Morales uma compensação financeira que ele hoje, visto o preço do barril de petróleo, tem condições de dar, e que o Brasil não tem.


Falemos da inserção da mídia nesse processo de tomada de consciência.


A.C.P. – Existe uma questão mais geral. O acompanhamento internacional da mídia brasileira sempre foi muito ruim. A imprensa brasileira não é bem preparada para opinar sobre questões internacionais. Ela se baseia em correspondentes. Esses correspondentes podem ser excelentes jornalista, não discuto isso, é algo que nem tenho capacidade de avaliar. Mas eles não têm competência para opinar sobre determinados processos internos de outros países. Opinam sobre os fatos que vêem. Uma das saídas é organizar debates de especialistas e levar em conta as conclusões desses debates, as opiniões dos especialistas. Outra maneira: peçam-se mais artigos.


Existe hoje no Irã uma questão que é uma das mais intrincadas com as quais o sistema internacional está tendo de lidar desde o final da Segunda Guerra Mundial. Não digo do final da Guerra Fria, mas da Segunda Guerra. E no entanto não aparece um artigo na imprensa sobre isso. É um escândalo.


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Nota – Um dos textos importantes sobre América Latina citados durante o fim de semana é do ex-chanceler mexicano Jorge Castañeda (governo de Vicente Fox). Chama-se “Latin America´s Left Turn” (a guinada da América Latina para a esquerda) e foi publicado na revista Foreign Affairs. Clique aqui para ler o artigo.


Paulo Sotero, correspondente do Estadão em Washington, fez uma importante entrevista com Castañeda, publicada neste domingo. Felizmente, o Estadão a coloca na internet como conteúdo aberto. Clique aqui para ler o texto.


Por sinal, cabe sugerir que os jornais e revistas brasileiros dêem livre acesso na internet a textos que possam servir como referência em estudos de questões nacionais, internacionais e científicas, por exemplo. Podem manter fechado o acesso a sessões de amenidades e frivolidades, se lhes parece que isso impede a perda de leitores das edições impressas.