O primeiro passo de Juan Luis Cebrián dentro de uma redação foi interrompido pelo voo de uma máquina de escrever Underwood, impiedosamente arremessada pelo crítico de cinema num repórter que acabara de criticar o diretor do Pueblo, jornal de tendências franquistas onde Cebrián daria início à sua carreira em 1962. Pouco mais de uma década depois, em 1976, ele participaria da fundação de um jornal que marcaria tanto a substituição da imprensa a um tempo folclórica e opinativa, ao estilo do Pueblo, por um jornalismo empresarial e objetivo, quanto a transição da sociedade espanhola da ditadura de Franco para um regime democrático: o El País.
Um dos criadores e ex-diretor do mais importante jornal espanhol, Cebrián hoje é CEO do Grupo Prisa, um conglomerado editorial e midiático de jornais, revistas, editoras e emissoras de rádio e televisão presente em 22 países. Nos ensaios do recém-lançado O pianista no bordel (Objetiva, tradução de Eliana Aguiar), Cebrián reflete sobre sua experiência profissional e discute o futuro do jornalismo no mundo digital – um futuro incerto, diz ele em conversa com O Globo sobre o livro.
***
Em seu livro o senhor diz que o El País se tornou um símbolo da redemocratização na Espanha. O que o jornal significa para as pessoas que nasceram depois desse processo, os jovens de hoje?
Juan Luis Cebrián – O El País surgiu de um movimento cívico, de um compromisso entre forças sociais, políticas e intelectuais partidárias da democracia. Naquele momento muitos jovens se identificavam com a esquerda, que não tinha voz nos meios de comunicação espanhóis, e o jornal ocupou esse espaço. Hoje é um momento muito diferente, mas muitos jovens nos leem, somos provavelmente o jornal de referência mais lido pelos jovens, ainda que para eles não tenhamos o mesmo sentido emblemático. Por razões históricas, porém, as pessoas ainda tendem a nos ver como um jornal aproximado das posições social-democratas.
Como o senhor acredita que deve ser feita a transição de veículos prestigiados como o El País para a internet?
J.L.C. – Os editores de jornais têm um problema. Há sinais preocupantes de que a imprensa está chegando ao fim. As circulações diminuem, a publicidade também.
Creio que estamos cometendo um erro fundamental, de supor que exista um modo de transplantar o jornal para a web, e que por termos tido êxito fora da web vamos ter também na web. A web é um fenômeno totalmente diferente.
Em que sentido?
J.L.C. – A diferença fundamental é que um jornal é um universo fechado, onde da primeira à última página se oferece uma certa edição do mundo. Há uma cumplicidade intelectual entre o leitor e o jornal. O leitor na web se comporta de maneira diferente. Vai do Globo ao New York Times e de lá para o Pravda. É um ambiente aberto. Por isso me parece equivocada a ideia de transplantar os jornais para a web. Outra coisa é a utilização das marcas. Isso ainda se está por ver, talvez possa funcionar.
Outra diferença importante é que os sites têm sistemas de medição de audiência muito mais precisos e constantes do que os dos meios impressos. Isso cria novas pressões sobre a linha editorial, não?
J.L.C. – É verdade, e não sei se isso é um problema. O que é certo é que a informação de qualidade está ameaçada. Não é fácil distinguir na web o que é rigoroso e verdadeiro do que é bullshit, como dizem os americanos. O problema é entendermos que estamos diante de uma mudança de civilização. Assim como os monastérios perderam o poder intelectual que tinham após a aparição da prensa móvel, hoje o poder informativo não é mais apenas dos jornais e editoras. A estrutura informativa como a conhecíamos pertence agora ao Antigo Regime. Não digo que o novo seja absolutamente bom, e que a tradição seja totalmente rechaçável. Há valores que é preciso resguardar, como os direitos humanos, o direito à propriedade intelectual. Mas temos que reconhecer que mudou.
Em seu livro o senhor cita uma frase dita pelo magnata da mídia Rupert Murdoch em 1980: ‘nosso negócio é o entretenimento’. Esse é um valor hoje muito defendido pelos consultores que fazem palestras sobre o futuro do jornalismo.
J.L.C. – Nada é absolutamente novo na vida e toda revolução tem uma contrarrevolução nas tripas. O que trato de dizer é que o essencial é compreender essa mudança estrutural. Não é saber se estamos diante de uma onda de trivialidade da informação ou não. O problema é que antes uns emitiam e outros recebiam. Éramos os sábios que comunicavam aos ignorantes. Algo disso tem que ser mantido, é preciso que se possa distinguir as verdades de mentiras. Mas a questão é como devem se comportar, num mundo ‘desintermediado’, uma coisa chamada meios de comunicação.
E como devem agir?
J.L.C. – O primeiro que temos que fazer é reconhecer o que está acontecendo. Não digo que os jornais vão desaparecer, mas digo que podem desaparecer. Para mim, o problema é estrutural. Na sociedade da comunicação, existe espaço para jornalistas? Isso está relacionado à crise da democracia representativa. Hoje os próprios partidos políticos desaparecem frente às iniciativas da sociedade digital, e os líderes políticos por sua vez buscam se relacionar diretamente com o povo. Há uma tendência à democracia direta, plebiscitária. O que não sei é o quão democrática é a democracia participativa.
E quanto à discussão sobre cobrar ou não cobrar pelo conteúdo?
J.L.C. – Já tivemos o modelo gratuito, o pago e voltamos ao gratuito. Para nós hoje a questão não é cobrar ou não cobrar, mas saber o que é um jornal na rede, e de que maneira levar as marcas para o mundo digital. Há um fato que todos citam, mas poucos levam a sério: a economia da rede é uma economia de demanda, enquanto todos os meios de comunicação hoje estão baseados numa economia de oferta. Os jornais se dirigem a um certo perfil geral de leitor, e não ao leitor individualmente. Buscamos um modelo de edições personalizadas. Isso não significa deixar de ajudá-lo e orientá-lo. É complicado. Não tenho as respostas. Não sei sequer se tenho as perguntas. Mas creio que é muito importante tentarmos fazer as perguntas certas.