Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Repórter rejeita partidarização da segurança

O repórter do Estado de S. Paulo Marcelo Godoy diz em entrevista ao Observatório da Imprensa que, antes de mais nada, é importante agora evitar a instrumentalização política da questão da segurança pública. “Muitas vezes não se dá atenção aos argumentos, mas à coloração política. O combate ao crime organizado não é de direita nem de esquerda. Tem que haver uma discussão suprapartidária, de forma equilibrada, que não recaia nas ilusões legislativas”.


Godoy conta que na cobertura da crise de segurança pública iniciada pelo PCC em São Paulo no dia 13 de maio predominou no Estadão o voluntarismo, mas houve organização. O jornalista constata que “no meio da loucura, conta bastante a experiência de cada profissional”. A chefia, diz o repórter, não tem a menor condição de planejar, como acontece em eventos programados, de que é exemplo agora a Copa do Mundo.


“Trata-se de jogar a tropa na linha de frente”, compara. “Evitar que as pessoas batam cabeça, aproveitar as boas idéias que surgem no meio da balbúrdia e usar as fontes que cada jornalista passa o ano inteiro cultivando”. É na crise que se testa se uma equipe funciona ou não. Na opinião de Godoy, a cobertura feita pelo Estado de S. Paulo foi positiva. “Conseguimos jogar luz sobre vários pontos dessa crise de segurança pública”, avalia.


Eis outros tópicos da entrevista.


PCC combina Máfia com guerrilha urbana


“Pode-se comparar a ação do PCC com a da máfia contra o Estado italiano nas décadas de 1980 e 1990, sob o comando de Salvatore Riina, chamado Totò Riina [ver, em inglês, verbete em Answers.com]. Houve atentados a bomba em Milão, Florença, Roma, quatro pessoas morreram e os bandidos ameaçaram pontos do patrimônio cultural da Itália que, diferentemente dos juízes assassinados, não podem ser substituídos.


No caso do PCC, deve-se entender que há uma união de prática mafiosa com o que estudiosos da doutrina militar chamam de táticas de guerrilha urbana. Mudança contínua de alvos – prédios, policiais, ônibus, bancos –, tentando deixar aturdidas as forças policiais.


O número de mortos pela Máfia não chega nem perto das cometidas agora pelo PCC, assim como a reação da polícia, que em poucos dias deixou rastro de 100 corpos”.


Indícios apontam que houve acordo


“Houve acordo das autoridades com o PCC? Há indícios, fatos mal explicados pelo governo. Algumas pessoas dizem que houve. Ainda que se tratasse da simples exigência de provar a integridade de um prisioneiro, isso já representa uma certa desmoralização do Estado: provar que alguém sob sua custódia está bem”.


O legado de Nagashi


“O ex-secretário da Administração Penitenciária Nagashi Furukawa era conhecido por um bom trabalho desde antes de assumir a pasta. Digno, honesto, grande conhecedor da área. Classificado como ´general da paz´, em contraposição ao secretário de Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho, que seria um ´general da guerra´.


Nagashi não fez tudo. Funcionou muito mais para a imensa maioria dos esquecidos, não ligados a nenhum tipo de criminalidade organizada. O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), um dos poucos instrumentos de controle de grupos organizados dentro das cadeias, nasceu sob a influência de Nagashi.


O sistema prisional hoje é algo muito diferente do que foi no passado. Os Centros de Detenção Provisória (CDPs) serviram para esvaziar as delegacias policiais e as cadeias públicas. Os Centros de Ressocialização também tiveram papel importante na mudança do sistema prisional de São Paulo.


O secretário desgastou-se com concessões – mesmo que se tratasse de conversas nas quais prevaleceu o bom senso, caso da mudança de cor dos uniformes”.


Erasmo Dias liberou laudos em 1975



“A política adequada tem um custo político que o governo paulista e seus aliados não tiveram a coragem de pagar. A Secretaria de Segurança Pública trabalhou com o discurso da linha-dura. Um investimento no marketing. Durões, não tergiversam.


Quando a máquina está em andamento, como parar? Frases que não são bem compreendidas na ponta [podem incitar à violência policial]. Como avaliar se foi morto alguém do PCC ou algum desafeto? Em alguns casos há testemunhas: ´Fulano era bandido, sim´. ´Beltrano viu ele atirar´. Casos em que a Polícia agiu dentro da lei. Tomara que sim.


Não tem cabimento não liberar laudos médicos. Essa atitude lembra o coronel Erasmo Dias, ao comentar mortes com características de execução pela Polícia: ´Bandido não tem costas´. Mas o coronel Erasmo, então secretário, liberou no dia seguinte os laudos dos mortos no caso da Rota 66” [1975].


Polícia comunitária



“A política de José Affonso da Silva [primeiro secretário de Segurança Pública do governador Mario Covas] contemplava um modelo de política comunitária que deu resultado, por exemplo, no Jardim Ângela, um dos dois únicos bairros de São Paulo onde a paróquia [do padre irlandês Jaime Crowe] ainda é uma Comunidade Eclesial de Base”.


Esquerda confunde crime comum com crime organizado


“Alguns parlamentares reagem como quem tem urticária. Propõem ´endurecimento da lei penal´. E há os demagogos. Não compreendem, ou não querem compreender, que a lei é para todos. Não pode haver progressão de pena em alguns casos e não em outros.


Mas é preciso criar uma legislação específica para o crime organizado. O Brasil ratificou em 2004 a Convenção de Palermo de 2000 [ver http://www.justica.gov.br/trafico/combate.htm] mas não transformou essa adesão em legislação específica. No código penal italiano foram introduzidos dois pontos essenciais: a definição de atos de terrorismo e, por proposta do deputado comunista Pio La Torre [ver, em italiano, texto publicado no site do Instituto Brasileiro Giovanne Falcone], o cárcere duro [ver estudo de Cesar Caldeira], medidas específicas para a Máfia.


A esquerda tem dificuldade de dissociar crime comum de crime organizado.


Não se trata do discurso de endurecimento da lei, como fizeram senadores afoitos que acenam com penas de 40 anos de prisão. Não cabe transformar qualquer trombadinha em projeto de Marcola. Isso só pode piorar as coisas.


Teóricos da disciplina, entre eles Foucalt, dizem que, mais do que punição, o que funciona é a recompensa. Como obter isso com uma lei de crimes hediondos que acabava com a progressão da pena? Foi um erro tremendo. Falta aos políticos foco e compreensão para dar ao país as medidas requeridas.


Penas alternativas podem ser adotadas para a imensa maioria de criminosos comuns, mas para os chefes de organizações criminosas a solução encontrada na Itália, na França e nos Estados Unidos é o encarceramento severo, principalmente em casos de grupos que atuam também atrás das grades. O RDD foi uma primeira tentativa, mas ainda pífia. Na Itália, Totò Riina está desde 1993 em cárcere duro.


É diferente da brincadeira aqui chamada de delação premiada. Exige um processo que comprove a ruptura do criminoso com a organização. Tomaso Buscetta (ver, em inglês, verbete da Wikipedia) não ficou um dia atrás das grades. Aqui, mandam a pessoa para a mesma prisão onde estão os que ele denunciou e oferecem: fica dez anos ao invés de trinta anos. Mas na mesma prisão… Vai convencer o criminoso de que é uma boa. A política adequada prevê mudança de nome quando a pessoa vira testemunha, pode até ganhar salário, ou mesmo ir para a cadeia, mas nesses caso nunca na mesma prisão onde estão os denunciados. No Brasil, a testemunha não tem o mínimo de tranqüilidade para depor. Que testemunha denunciaria Marcola? Isso é gravíssimo.


As pessoas que defendem o direito penal mínimo precisam reconhecer que a criminalidade organizada é um fenômeno à parte. Não é só afronta às normas sociais, vai além disso, e daí a sabedoria que consiste em igualá-la às organizações que enfrentam o Estado, querendo, uns, se encrustrar nele e, outros, substituí-lo”.


Negaram PCC, que cresceu na sombra


“Não concordo com a idéia de não citar nominalmente o PCC. Para mim, isso é uma balela. Quem está sujeito à organização, sejam ´soldados´ nas cadeias, seja a moradora atacada na Favela Flamenguinho, em Osasco, sabe que se trata de uma ação do grupo. Mencionar o PCC não significa glamurizá-lo. O PCC surgiu em 1993 e até 2000 a política do governo foi negar sua existência: ´Não existe, é invenção da mídia´. Nesse meio tempo, o PCC se organizou na sombra, antes que a sociedade pudesse se dar conta do problema e cobrar providências. É a mesma política da imprensa britânica na batalha do Somme, na Primeira Guerra Mundial. Os correspondentes de guerra ingleses, obedientes ao Estado-Maior, produziram manchetes que falavam de ´Grande sucesso!´ E, páginas adiante, vinham as listas de mortos.


A melhor forma de tratar o assunto é expor ao máximo a organização, mas não fazer disso instrumento de sensacionalismo. A imprensa prestaria um desserviço se divulgasse agressões fantasiosas, tentando mostrar o PCC como um perigo maior do que de fato é”.


Polícia fez autocrítica


“A atuação da polícia paulista tem deficiências, mas ela fez publicamente uma autocrítica na CPI do Tráfico de Armas quando admitiu ter falhado no combate ao PCC. É muito difícil ver isso acontecer. O normal é estabelecer uma contraposição entre heróis e bandidos. A declaração do delegado Godofredo Bittencourt foi importante [“Para o diretor (do Deic, Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado), o governo de São Paulo errou ´quando pegou a liderança do PCC e os bandidos mais perigosos e redistribuiu-os pelo Brasil´, porque propiciou a articulação do grupo com facções criminosas que atuam em outros estados”; ver reportagem de Sylvio Costa no site Congresso em Foco]. Ao mesmo tempo, um depoimento que deveria ter sido sigiloso é publicado com bastante destaque [porque a gravação foi vendida a advogados de integrantes do PCC].


Essa autocrítica me deu pelo menos o direito de ter um pouco de esperança. É como se a polícia dissesse: ´Vamos tentar consertar´. Estão identificando as falhas. Mas é difícil dizer se conseguirão ser eficientes. Cai por terra a postura ´Tudo o que poderíamos fazer foi feito´.


A polícia conseguiu alguns êxitos reais, como mostram trabalhos estatísticos sérios. Houve um número maior de prisões de acusados de homicídios, com impacto na criminalidade. Não se pode ignorar a participação da polícia nesses resultados. Produziu efeitos também o Estatuto do Desarmamento. Márcio Pochman [economista da Unicamp, ex-secretário do Trabalho da Prefeitura de São Paulo] estudou o efeito de políticas sociais nas periferias: Bolsa Família, Bolsa Escola. Não é questão de opinião. Há trabalhos sérios”.


Pesquisa se amplia


“Hoje há muito mais gente em São Paulo que pesquisa o assunto [a antropóloga carioca Alba Zaluar disse em programa do Observatório da Imprensa na TV que os estudos sobre segurança pública em São Paulo sofreram um recuo]. Segurança Pública deixou de ser um patinho feio da área acadêmica: Núcleo de Estudos sobre a Violência da USP, Ilanud (Instituto Latino Americano das Nações Unidas Para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente), IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), o próprio repórter Bruno Paes Manso, aqui do Estadão, fez em teses de mestrado e de doutorado um relato sobre a espiral de violência na cidade, depois transformado em livro” [O Homem X: uma Reportagem Sobre a Alma do Assassino em São Paulo].