Como forma de comunicação humana, o mito está obviamente relacionado com questões de linguagem e também da vida social do homem, uma vez que a narração dos mitos é própria de uma comunidade e de uma tradição comum.
Na criatividade mitológica há alguns monstros de caráter benéfico, que acompanham os deuses em seus cortejos, tendo a aparência híbrida – metade humana, metade animal. É o caso dos Centauros, originários da Tessália, lugar cheio de montanhas e terras áridas, que tinha na pecuária a sua principal atividade econômica. Esta fusão homem-cavalo originou a figura do Centauro, homem da cabeça ao tronco e cavalo da cintura para baixo. Monstro benéfico, representava a eterna luta das civilizações, do homem que traz em si o irracional e o racional.
No reino da mídia brasileira temos também tais seres. Infelizmente não tão mitológicos assim. Ao contrário, são reais, reais até demais. Refiro-me ao que chamo de midiátidos: seres metade imprensa metade partido político. Dos aldeões (gente comum) aos proprietários feudais (gente poderosa economicamente), eles instilam medo e terror.
Os três mandamentos
Da cabeça ao tronco personificam os partidos políticos em sua incessante luta pelo poder ou por sua manutenção, e da cintura para baixo encarnam características próprias de veículos de comunicação. São invariavelmente agressivos, em especial quando precisam tomar de assalto o poder. Algumas vezes no lugar da cabeça descansa a TV e, nas pernas e braços, teclados e microfones.
Os midiátidos habitam a mitologia desde a segunda metade do século 20, mas tornaram-se poderosos no imaginário popular a partir dos primeiros anos do século 21. Os primeiros registros datam de 11 de setembro de 2001. São reconhecidos por venderem, o tempo todo, gato por lebre, animais estes pouco utilizados em narrativas mitológicas. Para eles, informação é tudo o que possa ser transmitido em qualquer plataforma visando vilipendiar, menosprezar ou ridicularizar seus desafetos político-ideológicos. Os midiátidos se alimentam de refugo ideológico mantido sempre fumegante nas caldeiras do reacionarismo e aptos a receber caprichado verniz conservador. A esse alimento chamam notícia. E notícia é tudo o que possa conservar seu poderio e raio de influência política, econômica, cultural, comportamental.
Os midiátidos são originários do Sudeste brasileiro, mais exatamente no eixo Rio-São Paulo. É nesta região em que o supérfluo assume ares de artigo de primeira necessidade, e onde se localizam os quartéis-generais de seu senhor, o Deus-mercado. Consta em velhos manuscritos datilografados que esta divindade, desejando aperfeiçoar e objetivar seu culto, decretou expirados os Dez Mandamentos e colocou em seu lugar apenas três. São eles:
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Honrarás quem te pagar mais;**
Não deixarás que se extingam as desigualdades sociais;**
Para todos os efeitos, justiça passa a ter apenas um significado: dar a cada um o que é seu: riqueza ao rico e miséria ao miserável.Isenção e transparência
Buscando alongar sua história, os midiátidos demonstram muito apreço às idéias próprias do milenarismo. Isto fica patente por ser este o nome (Millenium) que encima uma de suas mais fantásticas habitações, na região mais afluente do mais rico, abastado e conservador estado brasileiro.
Seres avessos à atividade agropastoril e àquelas de natureza aquosa, os midiátidos possuem como principal atividade econômica manter em extremo grau de concentração o direito de propriedade, voz e voto. Isto significa que neste reino as diretrizes emanam de apenas seis vozes, algumas marcadas pela gravidade senil e outras nem tanto. O que importa é que uma vez decidido algo – que pode ser desde derrubar um governo, assassinar cem reputações ou construir uma sólida conspiração –, a decisão tem força de lei.
Os midiátidos, não obstante seu formidável poderio, nutrem medo doentio por algumas expressões muito em voga nos dias que passam: liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdade de pressão, controle social da informação, ações afirmativas, políticas públicas de inclusão social. Neste sentido, eles guardam semelhança com a Medusa, o Ciclope e o Cerbero. E só não se confundem com estes em seu poder letal porque conseguiram agregar em seu DNA mitológico o dom de assumir formas e características estéticas mais palatáveis – sentindo como Cerbero, mas se apresentando como Centauro; aterrorizantes como Medusa, mas sedutores como Sereias. É deles que antigos navegantes nos advertiram quanto ao ‘canto das sereias’.
Como Cerberos, manipulam fatos, editorializam o noticiário, ocultam informações, recriam a realidade à sua imagem e semelhança. Como sereias, tratam de alardear que agem com a mais absoluta isenção e a mais perfeita transparência. Muitas vezes são bem sucedidos em seus intentos, mas é fato que não podem fugir ao chamado natural: são metade jornal, metade partido político; metade televisão, metade neoliberalismo; metade rádio, metade apelo ao consumo desenfreado; metade internet, metade embusteiros.
Julgamento e condenação
É mais que comprovado que a dualidade habita nosso imaginário desde que pela primeira vez pisamos o palco da História. Nos mares vamos encontrar as sereias e os tritões, metade humanos, metade peixes, que seguem o cortejo do deus dos mares, Poseidon. Nos campos, temos as alegres figuras das divindades campestres, que trazem duas naturezas, a humana e a caprina, representada pelos Sátiros e os Silenos.
Nós, os humanos, sabemos que a felicidade requer equilíbrio entre razão e emoção e que realização pessoal passa pelo encurtamento da distância entre intenção e gesto. Embora sejamos os primeiros a concordar que não podemos servir a dois senhores, ainda assim não nos furtamos a afirmar que somos éticos no instante mesmo em que tratamos de dar um jeitinho nas coisas da vida que esbarrem na letra da lei.
Os monstros mitológicos normalmente são vistos como seres malignos que desafiam os heróis e os deuses, sendo por eles destruídos ou aprisionados. Mas no caso dos midiátidos, nada leva a crer que serão por estes aprisionados ou muito menos ainda, destruídos.
Donos de poder descomunal, os midiátidos julgam e condenam quem quer que seja – do lavrador sem terra em Marabá ao ministro de Estado em Brasília – sem ao menos instaurar qualquer processo legal. Eles elegem presidentes e depois, caso não gostem, derrubam. Em qualquer dos casos, fazem questão de seguir os procedimentos habituais, tudo dentro do mais lídimo processo legal, na moldura exata do Estado democrático de direito, de forma que os midiátidos não batem pregos sem lhes virar as pontas.
Fome de informação
De antemão peço desculpas ao leitor por haver embarcado nesta viagem. É que desenvolver a fantasia significa aperfeiçoar a Humanidade. E para entender a atuação da mídia brasileira nos dias atuais senti-me impelido a recorrer ao estudo dos mitos. E como não encontrei nenhum sob medida para esmiuçar o assunto lancei-me à missão de criar estes midiátidos. Concordo inteiramente com a percepção da acadmeia de que o mito, devido à sua riqueza simbólica quando corresponde a um comportamento, serve para ampliar o conteúdo afetivo.
O mito, quando não facilita a percepção do que era inconsciente, pelo menos envolve o sujeito em outros parâmetros de comportamento, possibilitando uma reformulação das ações na perspectiva de uma postura mais saudável de viver ou apenas amenizando o sofrimento.
O sofrimento de não ter como saciar a fome por informação verdadeira, isenta, imparcial.
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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter