As eleições de 30 de janeiro no Iraque ocupado vão dar o que falar por muito tempo. Há muita gente debatendo sobre elas. Para não fugir ao tema, a Folha de S. Paulo publicou no dia 2, caderno Mundo, página A9, o texto ‘Como os iraquianos vão definir sucesso?’, de dois norte-americanos: Frederick Barton e Craig Cohen (respectivamente, co-diretor e pesquisador do Projeto de Reconstrução Pós-Conflito do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de Washington).
‘As eleições iraquianas são dignas de elogio. Foram as primeiras eleições livres em 50 anos no país, e os americanos puderam fazer duas coisas que serão necessárias nos próximos meses: garantir um mínimo de segurança e confiar na população do Iraque. Ver a vida real retornar às ruas de Bagdá foi um símbolo importante da longa marcha até a liberdade … o comparecimento dos eleitores às urnas pode ter superado as expectativas da mídia e do governo Bush, mas como os iraquianos vão definir o sucesso?’
‘(…) Sem dúvida, isso vai depender da capacidade do novo governo de reagir com rapidez às questões críticas que ficaram sem solução durante a campanha eleitoral reduzida, que a insurgência obrigou a mergulhar na clandestinidade. A maior será a retirada das forças estrangeiras. O problema evidente no Iraque de hoje – a presença de um governo que não pode alcançar a legitimidade enquanto houver forças americanas no país e incapaz de garantir a segurança sem a presença dessas forças- só poderá ser solucionado pelos próprios iraquianos (…) Os EUA devem deixar que os próprios iraquianos decidam sobre o momento da retirada das tropas estrangeiras, com a ajuda de um referendo nacional. Um referendo permitiria um debate aberto sobre o que a ausência das forças americanas vai significar para suas famílias e o país (…)
‘(…) Se quiser ganhar credibilidade popular, o novo governo terá de cobrar a prazo curto a promessa americana de que Washington não tem a intenção de estabelecer bases militares permanentes no Iraque nem de beneficiar-se do petróleo iraquiano à custa do país. Criar um sistema de propriedade transparente, que direcione os benefícios da produção petrolífera futura ao atendimento de necessidades públicas amplas, poderia ajudar a lançar as bases para um contrato social renovado.’
Parece que neste parágrafo se encontra o principal problema para a emancipação real do Iraque como país autônomo e livre. A grande questão é exatamente esta: o que motivou a invasão militar anglo-americana e posterior ocupação de tipo colonial foi o petróleo. E isso não é aceito por grande parte da mídia ianque e pela maioria dos jornalistas, ensaístas, analistas e pensadores dos EUA. Ao contrário, há sempre uma tentativa de se escamotear essa discussão, usando os mais variados argumentos.
No meio, o Irã
No texto em questão, acontece exatamente isso, se bem que ele resvala um pouco sobre o tema, ao enfatizar a necessidade de o governo americano tornar público, para ajudar na legitimação do processo eleitoral iraquiano, que não está no Iraque por causa do óleo e nem pelas mais de 20 bases militares que instalou no país. Só que não é bem assim.
Como exemplo de que foi o petróleo o motivo da invasão, há o seguinte fato: durante a guerra, praticamente tudo foi destruído no Iraque. Infra-estrutura de água, saneamento, transportes, saúde, educação, moradias, prédios administrativos, bairros e vilas inteiras etc., fora o genocídio da população civil. No entanto, o ministério do petróleo ficou intacto. Não foi bombardeado e, quando da ocupação da Bagdá, foi imediatamente tomado e protegido por militares. Além disso, exploração e venda de petróleo foi a primeira coisa a ser restabelecida. Mesmo sendo alvo constante de ataques dos insurgentes iraquianos, o petróleo continua sendo bombeado para fora do país. Jorra no mercado americano, ainda sedento e necessitado desse insumo barato e nem tão mais abundante.
Outro fato que desmancha a tese da ‘inocência americana’ no Iraque é exatamente o número de bases militares espalhadas pelo país. Há quem diga que são mais de 20 e, pelo tamanho e equipamentos militares disponíveis, não parece que estão prestes a serem desmontadas e enviadas de volta aos EUA. O projeto americano para o Oriente Médio é de controle da região através de Israel – enclave armado até os dentes pelos ianques, para defender interesses dos EUA – e das inúmeras bases militares espalhadas por Afeganistão e Iraque. Convém lembrar que entre esses dois países está o Irã, levado à condição de ‘altamente perigosos e demoníaco’ pela atual administração fundamentalista americana.
Saída do impasse
Mas, não é só. Os americanos têm interesse, também, na bacia do Mar Cáspio. É outra região do mundo extremamente rica em petróleo e gás. O maior problema é a Rússia, país fronteiriço com a maioria dos países da região, antes integrantes da antiga União Soviética, como a Chechênia. Imagina-se que não haja planos americanos de confronto militar com a Rússia. Sabe-se lá, mas os EUA procuram influenciar os países da região, interferindo, se for o caso, até militarmente para ‘ajudar’ algumas repúblicas a se libertarem do jugo soviético, desculpe, russo. Há ainda os pipelines (oleodutos) que atravessam toda a região, transportando gás ou petróleo, até as bordas da Europa mediterrânea – ex-Iugoslávia, Turquia etc. É fundamental para a economia americana e da Comunidade Européia que essa ‘torneira’ continue aberta.
Outro oportunismo do texto, e da mídia americana em geral, é responsabilizar os iraquianos pelo caos e por sua solução. A invasão militar acabou com o país, desrespeitou tradições, a cultura e a história do Iraque, e agora, no meio de uma luta contra a ocupação, é passada à população do país a responsabilidade da resolver o impasse criado. Colocaram as eleições como um passe de mágica para solucionar os problemas que a invasão trouxe. Na realidade, a realização dessas eleições, não importa com que quórum de eleitores, era fundamental tanto para os EUA como para a envergonhada Europa.
Para os americanos, representou uma etapa vencida, apesar da farsa total. Para europeus e outros países, representou a saída formal do impasse criado quando da invasão. Grande parte dos países europeus – França, Alemanha, Rússia etc. – foi contrária à ação militar anglo-americana no Iraque, no Conselho de Segurança da ONU. Depois de consumada a operação, com a volta da exportação do petróleo iraquiano sob controle americano-inglês e dos custos para reconstruir o país, os europeus precisavam de uma saída formal para fazer parte do grande negócio chamado Reconstrução do Iraque.
Forte sinergia
As eleições, mesmo que ilegítimas, representaram essa porta de entrada. Os EUA podem voltar a ter relações diplomáticas mais saudáveis com europeus e estes, por sua vez, poderão participar do bilionário negócio que representa o Iraque ocupado. Todos resolvem suas questões. Menos, é claro, os iraquianos. Continuarão sob controle anglo-americano, agora com suporte político europeu e da ONU.
Ainda são poucos os textos americanos, na mídia e fora dele, que levantam essas questões. É como se isso envergonhasse os ianques, mostrando o que de fato os levou a essa empreitada colonialista. A preocupação continua sendo a de proteger as ‘virtudes da civilização americana’, ainda cantada em prosa e verso, dentro e fora dos EUA, como a mais perfeita e democrática da história. Essa pretensa ‘proteção’, quase igual ao que os pais fazem com filhos menores para que não percam a inocência antes do tempo, na realidade está alienando o povo americano. Há uma lavagem cerebral semelhante às que aconteceram nos países totalitários. A diferença é que isso acontecia nas ditaduras, diretamente pelos aparelhos de Estado. Nos EUA, acontece por controle do Estado – sistema educacional etc. –, mas é feito, também, pela mídia, que é majoritariamente privada.
Há uma forte sinergia – política e ideológica – entre a maioria dos veículos de imprensa, editoras, universidades etc. e o governo. Acima de tudo estão o país, a pátria, a bandeira, os interesses americanos, sejam eles quais forem. Nesse bombardeamento constante de mentiras, de manipulação de informações, a mídia ianque, tão ciosa das liberdades de imprensa e de opinião, vergonhosamente, mais uma vez, capitulou. Tem sido o grande suporte da atual administração americana, desde 11 de setembro, das políticas fascistas, coloniais e imperialistas dos EUA.
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Jornalista