Estréia às onze da noite deste domingo, na TV Cultura, em rede com outras emissoras públicas, o documentário Zumbi Somos Nós [ver chamada em vídeo colocada no YouTube], feito pelo Coletivo 3 de Fevereiro, nome dado para homenagear o dentista Flávio Ferreira Santana, assassinado aos 28 anos por policiais militares de São Paulo nessa data, em 2003. Flávio tinha acabado de deixar a namorada no aeroporto de Cumbica e foi supostamente tomado por bandido. Era negro.
O documentário toma como ponto de partida, em determinado momento, a reação da mídia ao episódio em que o zagueiro argentino Desábato, do Quilmes, xingou o atacante brasileiro Grafite, do São Paulo, de “negro”, “macaco” e outras expressões, recebeu voz de prisão dentro do campo do Morumbi e foi levado para uma delegacia de polícia. A mídia “caiu matando” contra o argentino, com uma contundência espetacular.
Segundo um dos autores do documentário, o DJ Eugênio Lima, essa reação da mídia tem a ver com a idéia de que no Brasil existe uma democracia racial. “A mídia avalizava uma idéia do senso comum que é: o brasileiro é uma espécie de ilha de democracia racial, cercado de racistas por todos os lados”, diz Lima na entrevista a seguir. “Racista é sempre o outro, mas cada um não é racista. Mas existe o racista. Aquele caso é exemplar. Porque era um caso de racismo que só nos competia delatar. O outro era argentino”. Por isso o documentário toma como ponto de partida essa reação, já usada no espetáculo Futebol, para mostrar as ações do grupo em estádios de futebol. A mais ousada foi a exibição de uma bandeira anti-rascista de 20 metros por 15 na abertura da Copa do Mundo da Alemanha, em 2006.
Mídia avaliza o senso comum da ´democracia racial´
O documentário, em certa passagem, explora de forma insistente a reação da mídia no episódio em que o jogador argentino Desábato, do Quilmes, xingou Grafite, do São Paulo, “de forma racista”, conforme o noticiário. O jogo foi no Morumbi em abril de 2005 e Desábato foi preso, conduzido a uma delegacia de polícia.
Eugênio Lima – A mídia avalizava o senso comum. Não tinha nenhuma posição crítica. Na verdade, ela confirmava algo que depois fomos comprovar a partir de pesquisas. O dado concreto é: perguntadas sobre se eram racistas, 90% das pessoas disseram que não. Perguntadas sobre se existe racismo no Brasil, 95% dessas mesmas pessoas disseram que sim. Racista é sempre o outro, mas cada um não é racista. Mas existe o racista. Aquele caso é exemplar. Porque era um caso de racismo que só nos competia delatar. O outro era argentino. Nem brasileiro era. A mídia reforçou uma idéia do senso comum que é: o brasileiro é uma espécie de ilha de democracia racial, cercado de racistas por todos os lados. Cada um do grupo tinha visto os noticiários esportivos e os outros noticiários, policiais. Depois, quando pedimos as imagens e fomos avaliá-las, vimos que a quase totalidade das imagens comprovavam essa tese. Nossa análise mostra como a mídia avaliza o senso comum, e como ela, que deveria ter um papel crítico diante da situação, não tem nenhum papel crítico. Ela só reforça os estereótipos e a idéia do senso comum.
E como essa passagem se insere no documentário?
E.L. – Isso foi usado como mote para abrir o espetáculo Futebol. Foi de onde tiramos o documentário Zumbi Somos Nós. É um espetáculo em que a gente reflete essa situação: a questão racial à luz do caso do Grafite.
Cobertura de eventos esportivos é engessada, abre brechas
Como vocês usaram a mídia na hora de conceber o documentário, fazer o roteiro?
E.L. – Ela sempre é uma instância da nossa reflexão. A ação direta que fazemos, nossas intervenções urbanas, principalmente no caso do espetáculo Futebol, que eram intervenções em estádios, tem um primeiro passo, que é a instância do espaço público, onde está sendo colocada, e também pensamos na capacidade que ela tem de ser levada para a repercussão midiática daquele fato. No jogo de futebol, por exemplo, nós localizamos que o jogo era um espetáculo em que tudo era muito programado. Sabíamos que se nós abríssemos uma bandeira em determinada situação seria muito provável que a televisão mostrasse essa bandeira. E ela ganharia outra esfera. Usamos essas brechas, esses mecanismos muito engessados da cobertura esportiva, da cobertura midiática dos fatos. Usamos essa mesma tática na Alemanha para colocar nossa mensagem numa esfera que atingisse milhões de pessoas e não só as pessoas que estavam dentro daquele espaço público naquele momento, como no caso dos estádios. A bandeira “Brasil Negro Salve” foi transmitida pela Rede Globo, ao vivo, na final da Libertadores.
Áreas de exclusão decretadas por neonazistas
Vocês abriram uma bandeira gigante com a frase “Know Go Area” na abertura da Copa do Mundo da Alemanha, no ano passado. Como a mídia da Europa reagiu?
E.L. – Quando eles perceberam, já tinham transmitido. Nós sabíamos que abriríamos uma bandeira em determinado momento. Conseguimos burlar a segurança e entrar com a bandeira. Sabíamos que a transmissão ao vivo iria começar às nove da noite e que o foco de todas as câmeras – já tínhamos estudado o local –, seria o lugar onde nós estaríamos. Se estivéssemos no local e abríssemos uma bandeira de vinte metros por quinze, a tevê iria mostrar. E foi isso que aconteceu. A abertura da transmissão da Deutsche TV, em rede, para toda a Alemanha, foi a bandeira da “Know Go Area”.
Eles tinham informação sobre o significado dessa frase?
E.L. – Não tinham informação nenhuma. Mas eles tinham na programação que iria se abrir uma bandeira da Alemanha, como de fato se abriu, e nós sabíamos disso. As transmissões de roteiros esportivos têm um roteiro muito previsível. Dentro desse roteiro, sabíamos qual seria a nossa condição. O primeiro impulso é mostrar a bandeira: está saindo da população. No momento em que eles checaram qual era a mensagem, tiraram do ar. Mas ela já tinha ido.
O que significa o “Know Go Area”?
E.L. – É um trocadilho com “No Go Area”. Colocamos o know, de knowledge. Os neonazistas determinaram o que eles chamam de área de exclusão, ou de área de risco. São áreas onde as pessoas que são descendentes de imigrantes, ou qualquer outra ascendência que não aparente ser a ascendência germânica, correm risco de vida, fisicamente. Quem usou esse termo foi o porta-voz do governo anterior ao da Angela Merkel [Gerard Schröder]. Ele falou em rede de televisão, pouco antes de nós chegarmos, que os estrangeiros, principalmente os torcedores, os fãs de futebol de origem africana deveriam ter cuidado, porque existiam na Alemanha “No Go Areas”, áreas onde os imigrantes não podem ir. Isso chamou uma discussão muito forte. O governador de Brandemburgo disse que aquilo não existia. Os imigrantes disseram que existia mas nunca era falado. Em cima dessa situação, a partir dos casos que tinham ocorrido – 14 casos, e o mais relevante, que moveu muito a sociedade, o caso do Ermias M., um alemão de ascendência etíope, tinha sido espancado e tinha entrado em coma, e quando saiu do coma não lembrava quem eram os agressores, que foram soltos. A partir dessa história, e em discussão com os grupos de ação na Alemanha, nós chegamos à idéia do “Know Go Area”. Foi uma idéia que veio aqui do Brasil. A Frente 3 de Fevereiro, em debate no Brasil, mandou essa mensagem para a Alemanha, onde nós estávamos em debate com os grupos de ação contra o racismo lá, num workshop. “Know”: saiba que essas áreas existem. Mas traduzindo como área de exclusão, de risco, onde sua vida corre perigo.
Era um rapaz de 28 anos que seguia os mandamentos do sistema
A que se refere a data 3 de fevereiro?
E.L. – Foi o dia em que Flávio Ferreira Santana, um jovem negro de 28 anos, foi assassinado [em São Paulo] pela Polícia Militar, supostamente confundido com um assaltante. A partir desse fato nós começamos a nos mobilizar e a mostrar que esse crime tinha motivação racial. A partir das ações relacionadas ao caso de Flávio Ferreira Santana se cria a Frente 3 de Fevereiro. Foi em 2003.
Um caso em que claramente não se podia dizer que se tratava de uma questão social, alguém mal vestido, parecendo um assaltante.
E.L. – Era um rapaz de classe média, recém-formado dentista, muito certo, tinha acabado de levar a namorada ao aeroporto, namorada branca, ele era mórmon, era o protótipo daquilo que o sistema fala: Se você fizer isso, você não corre risco desse tipo de ação. E mesmo assim ele foi assassinado. E foi um crime de motivação racial. Isso ficou comprovado. Na pena de Luciano José Dias, que foi quem atirou, tem esse agravante: crime precedido por motivação racial.
O PM foi julgado e condenado?
E.L. – Foi. Todos. Algo exemplar, porém não muito comum: todos foram julgados. E estão cumprindo pena. O Luciano José Dias pegou 17 anos de prisão. Não é a pena máxima. A pena máxima seria 25 anos. Mas os 17 anos de prisão são quase inéditos. E os outros dois envolvidos também foram condenados, a penas menores. Todos os envolvidos no caso foram julgados e condenados.
Quando foi criada a Frente?
E.L. – Em 2003. Nossa ação para a feitura de um monumento horizontal – um mês após a morte do Flávio nós fizemos um monumento no local onde ele foi assassinado.
Que é como começa a chamada em vídeo colocada no YouTube. E uma circunstância ainda mais patética é que o pai dele é um policial militar aposentado.
E.L. – Exatamente. Uma situação muito forte.