Deixem de lado por um dia o caixa 2 do PT pagando a Coteminas, os enormes – e suspeitos – prejuízos dos fundos de pensão, o novo depoimento à CPI dos Bingos sobre o caso Celso Daniel. Esqueçam por um momento até algo mais importante do que tudo isso, a briga de foice no governo pelos rumos da política econômica.
O que os jornais de hoje trazem de verdadeiramente revelador é um retrato da vida dos brasileiros que estão no fundo do poço – não só por serem os mais pobres, mas também por serem os mais fracos.
Trata-se do relatório “Direitos Humanos no Brasil”, produzido por 26 entidades civis e apresentado ontem, não por acaso quando está no país a paquistanesa Hina Jilani, a principal autoridade das Nações Unidas nessa matéria.
“São 260 páginas desoladoras”, define Gabriel Manzano Filho, no Estado. “Os autores tentam demonstrar que, na maioria dos casos, compromissos do governo não saíram do papel ou foram cumpridos apenas parcialmente”, informa Conrado Corsalette, na Folha. “O documento afirma que não há mais tempo para mudanças: a herança para 2007 será uma situação explosiva para o próximo governo, seja ele de esquerda ou de direita”, destaca Soraya Aggege, no Globo.
Esse é o balanço mais contundente do governo na área social. É também o mais insuspeito, porque os seus autores e os demais integrantes das ONGs a que pertencem votaram maciçamente emm Lula. Deles se pode dizer tudo, menos que não se identificavam com o PT.
O relatório – contrastando com as boas notícias da Pnad de 2004 – fala da violência no campo, da reforma agrária, do “etnocídio” de populações indígenas, da brutalidade policial nas cidades, do desemprego, do déficit de moradias, da violência doméstica contra a mulher.
A cada 15 segundos, por exemplo, uma mulher é espancada ou forçada a fazer sexo.
De janeiro de 2003, quando Lula tomou posse, a novembro último, morreram assassinados 147 sem-terra. [No primeiro governo Fernando Henrique, foram 171. No segundo, 120.]
A taxa de mortalidade infantil entre os povos indígenas é de 42 por mil nascidos vivos. No Brasil como um tudo é de 30,75 por mil. Na Argentina, 15 por mil.
As mortes violentas nas cidades aumentaram de 40 mil [no relatório anterior] para 50 mil.
O déficit de moradias em 2004 era de 6 milhões. Hoje, 7 milhões.
Entre os mais pobres, mais da metade (56%) das pessoas em condições de trabalhar está desempregada.
Nos canaviais, 13 pessoas morreram de excesso de trabalho. Exige-se de cada cortador que ceife 10 toneladas por dia; em certas usinas, quem não cumpre a cota fica sem cesta básica.
O único elogio irrestrito do estudo ao governo se refere ao combate ao trabalho escravo. Só este ano foram libertados 3.285 trabalhadores forçados, acentuando uma tendência que data de 1995.
Mesmo o carro-chefe dos programas sociais do governo – o Bolsa-Família – é visto com ressalvas. Segundo o documento, que reconhece a ampliação do benefício, trata-se de uma política compensatória e não transformadora.
A decepção das ONGs aparece por inteiro nas declarações da diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, responsável pelo relatório, Maria Luisa Mendonça. Nas suas palavras:
“Não existem ainda no Brasil políticas estruturais para lidar com violações, em área nenhuma. Essa situação permanece, ano a ano.”
E o futuro? “As organizações continuarão apresentando propostas”, diz Maria Luisa, “mas apostando menos nos processos eleitorais e mais no trabalho direto com a sociedade.”
Uma coisa não deveria excluir a outra. A descrença no poder do voto como instrumento de transformação da sociedade é uma história que acaba mal.
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