Sina de correspondente estrangeiro que não se limita a cobrir o país oficial onde trabalha é essa mesma: ficar sempre sujeito a levar bordoada de algum nacional ofendido com as suas reportagens.
O caso de Larry Rohter, do New York Times, é o mais notório. Ele quase foi privado do visto que lhe permite ser jornalista no Brasil — o que seria, além de uma violência liberticida, uma rematada estupidez — quando Lula ficou uma arara com a matéria em que ele dizia, sem comprovar suficientemente, que existia uma preocupação no Brasil com o seu hábito de “bebericar”.
Outras matérias dele também desagradaram ao Planalto, como a que dizia que nada mudara na favela Brasília Teimosa, no Recife, um ano depois de Lula ter ido lá, com toda uma comitiva ministerial. [O assunto rendeu controvérsias neste blog.]
Pelo menos, não lhe falta faro jornalístico. Mais de uma semana antes de a mídia brasileira descobrir o drama da estiagem na Amazônia, ele já tinha publicado uma consistente reportagem sobre a novidade.
Agora, Rohter apanha por ter aberto a sua matéria sobre o referendo de domingo, datada do dia 14, mas só publicada ontem, com um eye-catcher, como nas redações americanas são chamados os títulos e lides caprichados para chamar a atenção e que pecam pela falta de sobriedade.
“Os brasileitos têm uma assustadora propensão para atirar uns nos outros”, começa a reportagem, que recebeu o título “Gun-happy Brasil hotly debates a nationwide ban”. Em tradução livre, “Brasil chegado a uma arma debate acaloradamente uma proibição nacional”.
Os brasileiros podem não ser chegados a uma arma nem propensos a atirar uns nos outros. Mas os números que ocupam o segundo parágrafo do texto talvez justifiquem tais licenças jornalísticas:
“Com cerca de 180 milhões de pessoas vivendo aqui, perto de 40 mil foram mortas por armas de fogo em 2003. Isso é quase quatro vezes mais do que nos Estados Unidos, cuja população excede a brasileira em mais de 100 milhões. As cidades brasileiras estão se tornando mais violentas e perigosas, o crime está em alta e as gangues frequentemente tem hoje mais poder de fogo do que a polícia.”
Foi o que bastou para a turma do NÃO atirar no mensageiro porque a mensagem desagrada. O deputado Alberto Fraga, o líder do movimento contra a proibição, diz na Folha de hoje que a culpa por Rohter ter feito o que seria “uma matéria generalizando” é das “declarações irresponsáveis” da frente do SIM.
E mesmo a turma do SIM, como o diretor-executivo do Instituto Sou da Paz, que diz que as pessoas comuns se matam (“é um fato”), critica o jornalista. Rohter teria dado a entender que
“a pessoa faz isso porque é da índole dos brasileiros, e isso é errado”.
A ocasião faz o ladrão
O juízo mais equilibrado foi do deputado Raul Jungmann, do Brasil Sem Armas: “Não é que o brasileiro tenha propensão de sair atirando. Mas há um grande número de conflitos que são resolvidos por conta própria e que resultam em mortes por armas de fogo.”
É claro que ninguém nasce com essa ou aquela “propensão” ou com essa ou aquela “índole”. Mas existem culturas menos ou mais propensas a aprovar ou reprovar comportamentos que envolvam atos de violência, em situações do cotidiano.
Dias atrás fui abordado por um jornalista que disse ter apreciado os meus argumentos pelo SIM neste blog, mas vai votar NÃO. “É que lá onde nasci”, explicou, meio sério, meio brincando, “a gente tem o costume de resolver as coisas assim” – e fez a expressão universal com os dedos que significa arma de fogo.
E, de qualquer maneira, como vem ao caso lembrar, “a ocasião faz o ladrão”.
No mais, a reportagem de Rohter é quase toda fiel aos fatos, principalmente quando apresenta um dos motivos por que o NÃO está na frente nas pesquisas:
“O escândalo da corrupção criou um ambiente no qual, à medida que os brasileiros podem ser persuadidos a desviar suas atenções do escândalo, estão desencantados com as autoridades e procuram meios de exprimir esse sentimento.”
E ele fecha o texto com uma plausível conclusão do antropólogo Rubem Cesar Fernandes, diretor do Viva Rio: “Votar NÃO se tornou uma protesto contra tudo que está aí, como se fossemos o governo.”
A única pisada na bola da matéria – daí o “quase” de dois parágrafos atrás – foi flagrada pela correspondente do Globo em Nova York, Helena Celestino.
Como o meu vizinho Mauro Malin, do blog Todamídia, já registrou hoje, ela desmentiu, citando fontes militares, a informação de Rohter de que as armas que o Brasil exporta para o Paraguai e a Colômbia voltam, contrabandeadas.
Diz o Exército que o Brasil vende poucas armas para a Colômbia e, desde 1999, nenhuma ao Paraguai. Já para os Estados Unidos, vende muitas, “fato ignorado por Larry Rohter”.
Uma coisa é certa: a julgar pelo que tem saído no mundo sobre o referendo – quase sempre destacando, aliás, que várias personalidades premiadas com o Nobel pediram votos para o SIM –, a vitória do NÃO pegará mal para a imagem do Brasil no exterior.
Não se vá então dizer, como no tempo da ditadura e da tortura, que é culpa da imprensa estrangeira.
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