‘Tão importante para a credibilidade de um jornal como a nitidez da distinção entre factos e opinião é o estabelecimento de uma fronteira clara entre informação e publicidade. Atenta a esta regra, a leitora Alda Nobre não apreciou a publicação do trabalho ‘15 dias a comer super-iogurtes’, que fazia a capa do P2 na edição do passado dia 23 de Fevereiro. E enviou à directora do PÚBLICO uma carta em que manifestava a sua estranheza.
Passaram-se já algumas semanas, pelo que só os assinantes do jornal na Internet terão facilidade em reler, se quiserem, esse trabalho, que tinha por tema principal as virtudes terapêuticas de determinada gama de produtos de uma conhecida marca de iogurtes. Ainda assim, valerá a pena discuti-lo, por ser um caso exemplar.
‘Não sendo relevante na ‘reportagem’ a prova da evidência científica associada ao produto em causa, julgo estar-se’, afirmava a leitora, ‘perante uma eficaz operação publicitária, na qual o jornal se deixou levar, a ponto de ter aceitado o convite da marca e ter enviado um seu jornalista. Acho escandaloso que não se tenha omitido a marca (porquê esta e não outra qualquer?), e ocupado duas [na realidade três] páginas (mais a capa), com um artigo meramente promocional a um produto comercial, confundindo jornalismo com eficazes manipulações de marketing’. E explicava, a fechar, que nada a movia contra o ‘super-iogurte’: ‘O meu marido e o meu filho são, de há muito, consumidores do produto em causa. Mas jamais me passaria pela cabeça ver um dia, no meu jornal, uma golpe publicitário tão baixo’. A questão ficava assim delimitada: jornalismo ou marketing?
Explicou-me a direcção do jornal que a carta da leitora ‘foi de imediato enviada para o P2’ e uma das editoras do caderno lhe ‘respondeu pessoalmente’, para esclarecer de imediato ‘o que havia a esclarecer’. Não conheço o conteúdo dessa mensagem, mas o esclarecimento não terá tido o resultado pretendido, já que a leitora decidiu reencaminhar-me a carta atrás citada, insistindo na relevância do tema, e manifestando o desejo de que ‘o facto criticado não se repita’.
Vou tentar resumir, com a fidelidade possível face à limitação de espaço, o que se lia nesse artigo, que tinha por estrela a gama Activia dos iogurtes Danone. O PÚBLICO quis ‘conhecer os laboratórios da empresa’, explica uma das editoras do P2, Paula Barreiros, e para isso enviou aos arredores de Paris o jornalista Nicolau Ferreira, que ‘viajou a convite da Danone’, como transparentemente se informa no final do trabalho.
E que nos conta ele, com minúcia e engenho? Que os iogurtes Activia são um alimento ‘probiótico’ criado para ‘dar saúde’, graças aos milhões de bactérias da estirpe Bifidobacterium animalis DN-173010 que em cada embalagem aguardam a oportunidade de beneficiar a ‘regulação do trânsito gastrointestinal’ de quem os consome, como é recomendado, com frequência diária. Que a Danone quer ser uma ‘referência mundial de alimentação saudável’. Que ‘20 anos de história e artigos científicos (…) credibilizam a publicidade’ da empresa. Que especialistas nacionais ‘na área dos probióticos’ conhecem estudos no mesmo sentido. Que consumidoras ouvidas (a publicidade é direccionada para as mulheres) gostam do Activia ‘porque é bom’, e ‘não apenas pelo trânsito intestinal’.Após citar a opinião ‘mais cautelosa’ de uma representante dos dietistas portugueses, passa a ‘um dos problemas com que a Danone se debate actualmente’: ‘a competitividade com os produtos de outras marcas que utilizam bactérias semelhantes e que levam os consumidores a associar novos iogurtes às características de um Activia’. Que o problema assim limpidamente exposto é real, confirma-o a seguir o ‘alerta’ de especialistas já citadas: ‘Potenciais efeitos benéficos atribuídos a uma dada estirpe [de bactérias] não podem ser atribuíveis a outra’. Somos informados de que Bruxelas está atenta e que os produtores de alimentos apresentados como fazendo bem à saúde serão obrigados a fazer uma prova mais rigorosa das suas alegações.
Nicolau Ferreira comunica-nos, finalmente, a sua própria experiência de ingestão diária do Activia ao longo de uma quinzena. Que terá sido inconclusiva, como reconhece, sem deixar de sugerir que para tal terá contribuído alguma despreocupação com outros cuidados dietéticos durante o seu período de cobaia do super-iogurte.
Voltemos à questão: informação ou marketing? Paula Barreiros garante que o convite da Danone ‘nunca foi formulado no sentido comercial’. Já o director-adjunto Nuno Pacheco reconhece que ‘é evidente que, quando uma empresa decide convidar jornalistas a visitar instalações ou a ver como se faz determinado produto, o seu intuito é publicitário’. A editora do P2 argumenta que ‘o iogurte mencionado no artigo é o mais vendido em todo o mundo’ (facto aliás destacado na peça), e que ‘por isso falámos nesse e não noutro qualquer’ (explicação que se estranha, tendo o convite partido da Danone). Refere ainda que o autor do texto não assumiu a sua experiência como ‘científica’, e que ouviu especialistas sobre ‘o benefício dos alimentos probióticos’. Nuno Pacheco salienta, por seu lado, que ‘cabe aos jornais decidir quando é que determinada viagem ou proposta tem interesse jornalístico’, e que ‘foi este o caso’. E conclui que, acerca deste trabalho, ‘dificilmente se poderá falar em publicidade’.
Permito-me discordar. Sem pôr em causa que no trabalho do P2 se encontrarão informações úteis (não é por se referir a um produto comercial que uma informação, quando rigorosa, deixa de ser útil), a verdade é que o mais substancial do que ali se escreveu coincide, no tempo e nas linhas gerais, com uma vasta campanha publicitária em curso, como pode verificar-se numa rápida consulta ao site corporativo da Danone. Os tópicos são os mesmos: a estirpe bacteriana exclusiva do Activia mostra resultados, há estudos que o comprovam, a empresa quer afirmar-se como ‘referência mundial da alimentação saudável’, os seus investigadores trabalham para eliminar as barrigas inchadas por falta de probióticos (ver anúncios televisivos), a concorrência pode ser pouco escrupulosa com as suas bactérias de duvidosa eficácia.
Nessa campanha se insere, evidentemente, a ‘apresentação’ efectuada em França. Caricaturando um pouco, o PÚBLICO foi a Paris ver um powerpoint a cujos conteúdos o jornalista podia facilmente aceder sem se levantar da cadeira. O que levanta uma questão sobre os convites dirigidos à imprensa por empresas e outras entidades. Se a transparência é essencial — e este jornal deu um bom exemplo ao adoptar a norma de informar os leitores sempre que uma viagem é suportada por uma entidade externa —, há outros critérios a considerar: a independência editorial e a relevância jornalística.
Quanto ao primeiro, cabe ao jornalista assegurar o distanciamento necessário para que o que escreve não possa ser confundido com o que vulgarmente se chama ‘publi-reportagem’, género híbrido que não esperamos encontrar nas páginas informativas do PÚBLICO. Mas é óbvio que os convites que visam passar uma mensagem definida, como são geralmente os das empresas, criam sempre um terreno armadilhado, e por isso a sua aceitação deve depender também de uma avaliação de relevância.’
Hoje, a situação financeira de muitas empresas jornalísticas não permite suportar os custos de deslocações que seriam úteis à publicação mais regular de reportagens de qualidade. Pode compreender-se a abertura a convites que não condicionem a independência editorial, em casos de indiscutível relevância noticiosa. Mas a mesma situação leva a que os jornais lidem com falta de meios humanos para servir melhor os seus leitores, o que torna difícil compreender a aceitação de convites para deslocações que nunca fariam por iniciativa própria, só porque alguém lhes paga a maior parte das despesas. Os leitores do PÚBLICO entenderão que o seu jornal não possa ir a todo o lado em reportagem exclusiva, mas esperarão certamente que vá onde mais importa, e de preferência com a garantia de independência que resulta de assumir os custos das viagens. Por isso a pergunta é inescapável: que foi o PÚBLICO fazer à apresentação da Danone?
Não se veja, nesta reflexão, qualquer preconceito face à referência a marcas comerciais em peças de natureza informativa. Como se prevê no Livro de Estilo deste jornal, os seus nomes devem ser referidos quando ‘constituírem elementos úteis de identificação, de localização, de sugestão ambiental ou com carga de informação útil indiscutível’. Também nada impede que o PÚBLICO abra as suas páginas à análise independente de um determinado sector de bens de consumo (iogurtes, por exemplo), sem omitir as suas marcas comerciais. Ou até que decida um dia, se o achar relevante, comparar marcas de iogurtes, classificando-as como o faz com vinhos ou prestações de futebolistas.
O que o PÚBLICO não deve é permitir que as suas peças informativas possam ser confundidas com campanhas e estratégias de marketing. Por isso saúdo a exigência demonstrada pela leitora Alda Nobre. Tal como ela, nada contra os iogurtes da Danone, tudo contra a confusão entre jornalismo e publicidade.’