Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Morre um jornalista ‘civil’

Ousado, provocador e corajoso Francisco ‘Paco’ Huerta, jornalista de rádio mexicano, foi até o fim de sua vida e carreira, terminadas semana passada, aos 76 anos. Em novembro havia perdido o derradeiro emprego, um programa semanal de uma hora em uma grande emissora comercial. Numa reunião da equipe de trabalho, com a presença da primeira-dama, Marta Sahagún, Don Paco, como era conhecido, apresentou, como sugestão de pauta, uma gravação na qual uma ouvinte, dona de casa, pedia ao presidente Vicente Fox que tirasse as finas botas de couro que exibe por todo lado e se colocasse nos sapatos do povão. Marta, lívida, levantou-se no ato e foi embora sem dizer palavra. Não demorou muito e o programa saía do ar. Nem assim ele desistiu. Perdidos de vez os espaços na rádio comercial de seu país, agora transmitia de casa um programa em espanhol para os emigrantes mexicanos nos Estados Unidos..

Seja como for, ele ainda teve o privilégio de, irônicos percalços à parte, em plena atividade, aproveitar um pouco o clima de ampla liberdade de expressão que chegou com a eleição de Fox, há três anos, removendo do poder, depois de 70 anos, o até então imbatível PRI – Partido Revolucionário Institucional –, com sua máquina repressora, autoritária, concentrada em sufocar, perseguir e, de preferência, pois assim todo mundo ficava contentinho, corromper jornalistas e empresas jornalísticas. Era a época do embute (jabá), dos boletineros, jornalistas que nem sequer reescreviam os comunicados oficiais, das enormes e vergonhosas comitivas de imprensa em viagens presidenciais ao exterior, com tudo pago, bordéis de categoria incluídos.

Gênero inédito

Don Paco viveu e sofreu parte dessa sórdida repressão, ao longo da qual, programas cancelados sem aviso prévio, foi despedido inúmeras vezes, ele e a família ameaçados, vigiados dia e noite. Houve até um obscuro episódio, um atentado do qual teria sido vítima, quando levou nos rins um par de plomazos (chumbo).

Desde o principio de sua carreira como jornalista de rádio ele parecia inclinado a trombar com a sinistra instituição presidencial mexicana, intocável até a queda do PRI. Quando, em 1970, escreveu e colocou no ar seu primeiro editorial, não deixava dúvidas sobre a postura profissional que escolhera. Leu então o seguinte texto curto e grosso: ‘Senhor presidente, hoje o senhor fez um discurso que me parece importante, mas a verdade é que não entendemos nada porque da forma como o senhor explica as coisas o cidadão não entende. Seria o senhor tão amável de nos explicar o que quer dizer?’ Naqueles tempos, isso soava como uma enorme e perigosa falta de respeito com a figura presidencial.

Contudo, a razão mais forte pela qual as autoridades nunca deram trégua a Don Paco é que ele, em 1976, criou um tipo de programa radiofônico inédito no México, Opinión Pública: abriu os microfones aos ouvintes para que estes fizessem reclamações, protestos, pedidos, consultas, críticas, sempre na modesta condição de cidadãos. Já que não era possível acreditar nos jornais, amordaçados pelo sistema, repletos de repulsivas loas ao governo e governantes e farta publicidade oficial, então que o povo falasse através do rádio, o jornalista ficasse num segundo plano.

Programa na rua

No fundo, era o próprio Don Paco quem expressava suas opiniões, filtrando e monitorando as queixas comuns dos habitantes da maior cidade do mundo – falta d’água, cortes abruptos e prolongados de luz nos bairros, burocracia ineficaz, corrupta, transporte sujo e precário, insegurança urbana, arbitrariedade policial. ‘¿Don Paco, nos puede ayudar a resolver el problema?’, perguntavam os ouvintes, aflitos e cansados de tanto peregrinar por repartições públicas sem resultado algum. Ele prometia encaminhar as solicitações aos chamados canais competentes.

Paciente, voz grave e pausada, ouvia, fazia suas intervenções, mas deixava o ouvinte desabafar, na crença do poder da palavra das pessoas. Era o que ele denominava ‘jornalismo civil’, aquele que se faz com a voz dos cidadãos, sem colorido partidário ou ranços ideológicos. Mas, por meio do qual, obviamente, raspadas as prosaicas camadas de cima, se revelavam as mazelas de um sistema político e social anacrônico e podre em todos os níveis. Mensagens claras e perigosas captadas pelos arapongas do sistema e passadas de imediato aos seus aspones e daí mais para cima, até Los Pinos, a residência oficial do poder maior mexicano.

O efeito foi surpreendente: a principio houve desconcerto, temor, curiosidade, ninguém sabia como o esquema oficial, sempre prepotente, reagiria a tal atrevimento, mas o programa até que durou muito, seis anos, e depois de intermináveis cortes e mutilações da censura foi tirado do ar. A essa altura, porém, Don Paco já havia criado uma forte presença no rádio mexicano, altamente credenciado para continuar enfrentando as pressões dos poderosos de plantão, o que faria com pesados custos para sua vida particular. Perdia um emprego, conseguia outro, vivia na corda bamba. Incansável, quando não tinha espaço no rádio, ele improvisava seu programa Opinión Pública nas calçadas da Cidade do México. Microfone na mão e aparelho de som ao lado, soltava o verbo, convocava os transeuntes a botar a boca no trombone. E não faltava auditório.

Marcados na história

Dizia há pouco o prestigioso colunista político Miguel Angel Granados Chapa, do jornal Reforma, ele também respeitado jornalista radiofônico: ‘Ignoro se será possível determinar com alguma aproximação as contribuições de Paco Huerta à abertura da radiodifusão no país, mas sem dúvida contou de modo primordial nesse fenômeno, parte da modernização da sociedade mexicana.’

De fato, hoje, o jornalismo radiofônico no México é ágil, crítico e combativo, levando boa vantagem sobre a televisão, esta sim, ainda amarrada ao poder, sempre dependente de concessão federal, o que a obriga a maneirar nos noticiários. Mesmo assim, quando comparada com a pusilanimidade de quatro anos atrás, a TV também progrediu bastante no item coragem e honestidade informativa. Os grandes jornais, sólidas empresas comerciais, não dependem mais tanto da publicidade governamental e podem portanto ser mais vigorosos em suas matérias e editoriais.

Ao publicar suas memórias em 1997, Crónica del periodismo civil – La voz del ciudadano, Don Paco agradecia sobretudo ao seu fiel público de rádio: ‘(…) Com este livro ficam marcados na história do jornalismo mexicano o pensamento, o testemunho e a realidade do homem e da mulher infinitesimais como resposta às decisões inconsultas dos governantes (…).’

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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México