Um acordo transnacional pode mudar a maneira como encaramos os direitos autorais, a pirataria e o compartilhamento de arquivos na internet (e também fora dela). O Acordo Comercial Anti-Falsificação (ACTA) vem sendo negociado há dois anos, secretamente, por Estados Unidos, União Europeia, Canadá, Japão, Coreia do Sul e vários outros países. Classificado como ‘segredo de segurança nacional’ para a administração Obama, um rascunho do tratado acabou vazando na internet, em março.
Desde então, organizações de proteção aos cidadãos cobram que os participantes divulguem o que está sendo discutido. Na quarta-feira (21/4), após uma reunião na Nova Zelândia, eles finalmente resolveram fazer isso.
O consenso dos comentários sobre o documento é que seus tópicos, se ficarem como estão, ameaçam a liberdade da rede. Como diz o advogado especializado em internet Omar Kaminski, as propostas ‘fizeram acender uma luz amarela, senão vermelha, em ciberativistas do mundo todo’. Dúbios, os artigos dos textos vazados anteriormente davam a entender que usuários seriam desconectados após três infrações de direitos autorais, que provedores seriam obrigados a agir de maneira policialesca e até que iPods e laptops seriam revistados em fronteiras.
Já o acordo tornado público, ainda sujeito a alterações, ‘não é o pior que esperávamos, mas ainda assim é bem ruim’, como comenta o jornalista Nate Anderson no site Ars Technica.
Primeiro vazamento
Se cortar a internet de quem baixa músicas e filmes parece não estar mais em discussão, ainda assim há artigos que forçam provedores a ‘acabar com ou prevenir’ infrações de copyright e outros que dão margem ao fechamentos de sites de torrent e redes de trocas de arquivos. Além disso, existe a preocupação de que trechos tenham sido limados para a divulgação. ‘Não acho impossível que assuntos delicados reapareçam depois, se a pressão da sociedade civil baixar’, alerta Pablo Ortellado, do Grupo de Políticas Públicas para o Acesso à Informação da USP.
‘Está cheio de parênteses e é muito, muito dúbio. Mas dá pra ver que o texto se preocupa mais em saber como a polícia e o juiz vão atuar. Foca mais na aplicação da lei do que na lei em si’, diz Samuel Conceição, coordenador de direitos autorais do Ministério da Cultura. O órgão vem propondo uma reforma da Lei dos Direitos Autorais brasileira e, no final do ano passado, apresentou suas ideias: permissão da transferência de obras entre mídias e do remix, autorização de cópias para uso privado e não-comercial, reequilíbrio entre o interesse público e o da indústria.
Sem dúvida bem mais permissiva que o do ACTA, a revisão da lei 9.610/98 deve ser colocada, em breve, em consulta pública, para depois ser apresentada ao Congresso. Apesar da diferença de propostas, o MinC não acredita que o acordo multilateral possa frear a aprovação do projeto por aqui. Em nota oficial, os responsáveis afirmaram, lacônicos, que ‘o Brasil não é afetado pelo acordo, já que não está envolvido na negociação’.
Chefe da Divisão de Propriedade Intelectual do Itamaraty, Kenneth Félix Haczynski acha que não é tão simples assim. ‘Com certeza o ACTA vai ser usado para fazer pressão’, diz, em entrevista por telefone. Após afirmar que o Brasil nunca foi convidado para fazer parte das discussões, ele criticou como o processo foi conduzido(‘fechado apenas entre os países desenvolvidos’) e também se mostrou preocupado com seu conteúdo (‘essa proteção dos direitos intelectuais, repressiva e policialesca, pode afetar direitos básicos como o da privacidade’). Apesar de o Ministério de Relações Exteriores ainda não ter uma posição oficial sobre o tema, Haczynski diz que ‘ignorar os emergentes ao tomar essas decisões não foi um bom começo’.
Para o advogado francês Jérémie Zimmerman, um dos principais nomes no combate à falecida Lei Sarkozy e comandante do site Le Quadrature du Net, o primeiro a vazar informações sobre o ACTA, é possível que os países queiram primeiro fechar um texto e depois impor a outros, menos influentes: ‘Por exemplo, só compram seu café se você assinar’. Resumindo sua opinião sobre uma virtual aprovação do projeto, o ativista diz que ‘ele é tudo o que a indústria do entretenimento quer e tudo que os usuários abominam’. Para ele, seria como transformar o computador em TV. ‘Quem ama a internet deve se opor ao ACTA’.
Os perigos do ACTA
Acordo Comercial Anti-Falsificação mobilizou ciberativistas pelo mundo
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Desconexão forçada. Em um rascunho que vazou há algum tempo, o ACTA previa que infratores reincidentes poderiam ser desconectados legalmente. Uma variação do que a Lei Sarkozy propunha, cortando o acesso à internet de quem corrompia o copyright pela terceira vez. Já no texto divulgado na última quarta-feira, a medida sumiu.**
Provedor polícia.Na versão divulgada pelo ACTA, ainda aberta, existe uma opção que permite que o Estado ordene desconexões. Eles teriam a autoridade de forçar os provedores a ‘acabar com ou prevenir uma infração’. Isso quer dizer que, judicialmente, será possível barrar o acesso a certos sites, além de impedir algumas pessoas de acessá-los.**
Anti-p2p. Atos como filmar a tela do cinema se tornarão, por exigência do ACTA, crimes. ‘Infração intencional de copyright em escala comercial’, como eles chamam. As outras versões do texto incluíam a pirataria digital nesse artigo, mas ainda não há um consenso. Além disso, tal penalização poderá se aplicar quando ‘não há motivação financeira direta ou mesmo indireta’, Como no caso do P2P.**
Cadeado inquebrável. Será crime abrir o cadeado da trava anti-cópias DRM, usada principalmente pela indústria do entretenimento para manter o controle da circulação dos seus arquivos. Mesmo se ‘o objetivo comercial não for significativo’.**
iPod revisitado. O documento desmente a ameaça de que autoridades de alfândega poderiam examinar MP3 players e laptops de viajantes, em busca de material sob copyright. Se não houver objetivo comercial, pequenas quantidade estão livres. Mas as ‘autoridades de fronteira poderão agir de iniciativa própria’ se notarem itens suspeitos.**
Pressão. Muitos acreditam que o ACTA não se restringirá apenas aos países signatários, mas servirá também como elemento de pressão em fóruns internacionais. O plano dos membros é fazer que outras nações assinem o tratado, com o texto já pronto.O que dizem
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‘Está errado quem acredita que eles não querem mais nos desconectar. Ninguém imaginava que eles colocariam isso de uma maneira óbvia.’ – Christian Ergström, representante do Partido Pirata Sueco no Parlamento Europeu.**
‘Eles poderão, por exemplo, desconectar você porque seus filhos foram acusados de subir conteúdo protegido no YouTube. E criminalizar também aqueles que o incitaram a fazer isso.’ – Lawrence Lessig, fundador do Creative Commons.**
‘Vai se delimitando uma ciberguerra. De um lado os que querem o controle, do outro os idealistas. ‘ – Omar Kaminski, advogado especializado em internet e autor do blog Internet Legal.**
‘E se você desenvolver um software livre, que pode ser usado para baixar conteúdo livre e música e filmes com copyright? E se você linkar sites de torrent, com conteúdo que tinha DRM? Arriscando ser condenado por incitar o crime, você também seria censurado.’ – Jérémie Zimmermann, advogado-ativista do grupo francês La Quadrature Du Net**
‘Se aprovado, as liberdades civis estariam em risco. Direitos humanos fundamentais seriam atropelados e viveríamos em uma sociedade completamente monitorada.’ – Partido Pirata do Brasil em comunicado divulgado ao ‘Link’.**
‘Se aprovado, será utilizado como elemento de pressão. Tem sempre sido assim. A estratégia é fazer um acordo apenas suficientemente amplo e depois pressionar para que os demais países assinem.’ – Pablo Ortellado, líder do Grupo de Políticas Públicas de Acesso à Informação da USP