A cada ciclo de barbárie no Oriente Médio, jornais de outras partes do mundo que mereçam respeito têm a obrigação elementar de cobrir e comentar com a máxima honestidade a sangueira e de oferecer aos seus leitores, dia sim, o outro também, artigos de opinião que exprimam os pontos de vista das partes em conflito – sem esquecer que, em cada lado, pode haver mais de uma opinião.
É o que faz, por exemplo, o Guardian de Londres. É o que não fazem os jornais americanos, nem mesmo os “liberais” – para não falar do noticiário escancaradamente faccioso da CNN, que se tornou, no caso, pouco mais do que uma Fox News do B.
[Para azar da CNN, a sua pergunta na internet “Você acha que a resposta militar de Israel no Líbano se justifica?”, recebeu até o momento em que escrevo esta nota 55% de votos não e 45%, sim, em 776 mil votantes.]
Na imprensa brasileira, aqui e ali há artigos moderadamente críticos de Israel, como os dos colunistas Nicholas Kristof, do New York Times, e Richard Cohen, do Washington Post, ambos transcritos no Estado de hoje.
Mas textos que tomem claramente o partido árabe, vi apenas um, no Valor, ‘Legítima defesa ou crime’, de Salem Hikmat Nasser, professor de direito internacional na Fundação Getúlio Vargas citado ontem na nota “Leituras da barbárie”.
Em compensação, a Folha publica hoje, com direito à chamada na primeira página “Desta vez, Israel apenas se defende”, o artigo “O real inimigo do Líbano é o Hizbollah”, do escritor israelense Amós Oz – não confundir com o grande jornalista Amos Elon, do diário Haaretz, severo crítico das políticas de seu país.
O que diz Oz de tão notável que a Folha achou que precisava alertar o leitor – e publicar sem a contrapartida de outro artigo com sinal contrário?
“Israel não está invadindo o Líbano. Está se defendendo do assédio e bombardeio diário [sic] de dezenas [sic] de nossas cidades. Não pode haver comparação moral entre o Hizbollah e Israel. O Hizbollah está alvejando civis israelenses, onde quer que estejam, enquanto Israel alveja principalmente [sic] o Hizbollah.”
O assédio do Hizbollah matou até ontem 25 israelenses – 13 civis e 12 militares. Também até ontem, os bombardeios israelenses mataram 228 libaneses e estrangeiros civis, alguns deles em fuga para a Síria, e 11 militares, além de arrasar o Líbano e de provocar o êxodo de meio milhão de pessoas.
Em compensação, sabe quantos soldados do Hizbollah Israel conseguiu matar até ontem? Quatro. Isso: 1, 2, 3, 4. Deu até no Jornal Nacional.
Mas o que há de especialmente repulsivo no artigo de Oz, que a Folha promoveu na primeira página, não são nem as inverdades factuais e as desbragadas omissões do autor.
É a referência à impossibilidade de “comparação moral” entre os atos da organização terrorista muçulmana e os do Estado que pretende destruir – e que, desde Sharon pelo menos, não raro se comporta como um Estado terrorista, seguro da impunidade na condição de protetorado americano.
É uma idéia tão repulsiva como a que manifestou ontem o embaixador dos Estados Unidos na ONU, John Bolton [o mesmo que certa vez afirmou que o edifício-sede da organização poderia ser cortado pela metade que não faria a menor diferença].
Segundo a agência France Presse, Bolton disse que não há “equivalência moral” entre as vítimas civis dos ataques israelenses e as vítimas de “malignos atos terroristas” contra Israel.
As ações militares de Israel visam à auto-defesa do país, dizem Oz e Bolton. Se elas provocam mortes civis, paciência. São “consequências trágicas e desafortunadas”.
Como perguntou com amarga ironia o leitor – por sinal de origem judaica – que me chamou a atenção para a fala de Bolton:
”Sacou?”
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