Governo e partidos, neles incluído o PT, estão divididos em relação ao projeto de emenda constitucional que o noticiário correu a batizar com o velho clichê ‘trem da alegria’, capaz de acomodar uma população estimada entre 260 mil e 310 mil servidores públicos.
Atipicamente, porém, os três grandes diários nacionais tampouco são unânimes em relação a essa proposta que data de 1999 e que o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, pretende finalmente incluir na pauta de votações, a pedido do colegiado de líderes da casa.
Em editoriais, Folha e Globo desancam o projeto de alto a baixo. O Estado, que o vê de outro ângulo, até se pergunta se a expressão trem de alegria se aplica a ele indistintamente.
O assunto é quente, e o conflito de opiniões é útil para evitar que o leitor queime as mãos com ele. Por isso, aqui estão os três editoriais.
Três Maracanãs’ [Folha]
A Câmara dos Deputados se articula para dar mais um bote na sociedade. Ela está preparando um dos maiores trens da alegria de que se tem notícia, que poderá beneficiar mais de 260 mil servidores.
Como num passe de mágica, esse exército de funcionários, equivalente à população da cidade de Foz do Iguaçu ou a quase três estádios do Maracanã lotados, ganharia estabilidade ou seria efetivado sem a necessidade de prestar concurso público.
A esparrela é uma obra coletiva que tomou a forma de duas propostas de emenda constitucional (PECs). A primeira, nº 54/1999, originalmente apresentada pelo então deputado Celso Giglio (ex-PTB-SP, hoje no PSDB), dá estabilidade a cerca de 60 mil servidores contratados sem concurso entre 5 de outubro de 1983 e 5 de outubro de 1988, quando a Constituição estabeleceu que o ingresso no serviço público dependeria de aprovação em exames específicos.
Provavelmente por considerar 60 mil pouco, alguns deputados apuseram emendas à PEC que ampliam o número de favorecidos. A mais contundente delas determina a efetivação de funcionários hoje contratados para serviços temporários nos Estados, municípios e na União. É difícil precisar quantos seriam beneficiados pela medida, mas técnicos da Câmara estimam que eles sejam, só em âmbito federal, algo como 200 mil almas.
A segunda PEC, nº 2/2003, de autoria de Gonzaga Patriota (PSB-PE), escancara as portas para um outro tipo de farra no funcionalismo, ao criar atalhos para os mais cobiçados postos da administração. Basta que o candidato à prebenda seja aprovado num concurso público para qualquer cargo de qualquer prefeitura do interior de qualquer Estado e seja requisitado por um deputado para trabalhar na Câmara, por exemplo. Se a PEC 2 for aprovada, ele poderá optar por efetivar-se como funcionário do Legislativo federal e não no cargo para o qual foi aprovado.
Evidentemente, são numerosos os casos de deputados que levam para seus gabinetes, a título de requisitados, parentes e amigos que prestaram concurso nos seus municípios de origem. É um acinte que, num momento em que se fala na necessidade premente de melhorar os quadros da administração pública e cortar privilégios injustificáveis, parlamentares venham propor bandalheira desse calibre.
É preciso que a sociedade mantenha sob forte pressão os deputados, única maneira de assegurar que as PECs sejam enterradas. Um trem da alegria com no mínimo 260 mil poltronas é só o que falta para dinamitar a combalida imagem do Congresso.
‘Trem pagador’ [Globo]
Brasília firma-se na especialidade de despachar “trens da alegria” rumo ao Tesouro Nacional. Distante do país real, cidade onde políticos estão expostos à pressão cotidiana do lobby das incontáveis corporações que existem e controlam a máquina burocrática, Brasília é uma espécie de parque temático erguido em homenagem ao desperdício do dinheiro do contribuinte. A prática de formação desses comboios para inchar a folha de pagamentos do setor público é antiga. Mas a alegre composição que se encontra em fase de organização parece ultrapassar todas as medidas: constituído por duas emendas constitucionais, o “supertrem da alegria” pode transportar 310 mil pessoas.
Trabalhadores temporários seriam contratados como servidores públicos estatutários, portanto estáveis; funcionários da administração direta e indireta, as estatais, que perderam o trem da Constituição de 1988 entrariam nesse novo comboio, e servidores requisitados seriam contratados no atual posto de trabalho — com salário mais alto, claro. Uma grande e indecente farra. A experiência com a Constituição de 88, quando milhares de celetistas do serviço público embarcaram numa dessas risonhas caravanas em direção ao paraíso do emprego estável, onde não existe cobrança de eficiência e a aposentadoria é idêntica ao último salário, já demonstrou o ônus que cabe à sociedade. Sobre ela, já envergada sob o peso dos impostos, uma nova conta é depositada, a do aumento e engessamento das despesas salariais com esse pessoal. Indemissível, ele se eternizará como custo para o contribuinte, sem a garantia de qualquer retorno para a população. E enquanto o Congresso não concluir a reforma na previdência do funcionalismo público, com a criação de fundos de pensão complementar, boa parte da aposentadoria vitalícia desse pessoal terá de ser paga pelo Tesouro.
Para agravar o cenário, no governo Lula o quadro do funcionalismo voltou a inchar: no primeiro mandato, o número de servidores do Executivo federal aumentou em 22%, de 810 mil para 992 mil. O país está prestes a contar com um milhão de funcionários na máquina federal, sem que o serviço público tenha apresentado alguma melhora proporcional ao inchaço. E nada garante que o quadro mudará com a aprovação dessas emendas. Muito pelo contrário.
‘Os esqueletos do serviço público’ [Estado]
Está certo o presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia, ao incluir na pauta de votações da Casa o Projeto de Emenda Constitucional nº 54, de 1999, concedendo estabilidade aos cerca de 60 mil funcionários da administração federal direta e indireta admitidos sem concurso público antes da Constituição de 1988 e ainda na ativa. O deputado diz ter a “exata dimensão” do conteúdo polêmico da proposta, pelos acréscimos que a ela se incorporaram. Ainda assim, sustenta ele – ou por isso mesmo, seria o caso de dizer -, é preciso dar uma resposta, “qualquer que seja”, a um problema que se eterniza. Trata-se, aliás, de mais uma questão reveladora da coleção de esqueletos que parecem não desaparecer nunca dos armários do Estado nacional.
Ela também ajuda a entender a barafunda que é o setor público brasileiro, as decisões oportunistas que dela decorrem, em geral sob pressão dos lobbies da burocracia e da conveniência dos políticos, e ainda o abismo entre essa realidade anacrônica e qualquer coisa vagamente parecida com a necessária eficiência da máquina na gestão dos rotundos gastos com pessoal dos poderes estatais. A Emenda nº 54, de autoria do então deputado paulista Celso Giglio, visava a corrigir uma anomalia, mas, como sempre, acabou dando margem a outras. O caso se origina em mais um erro dos constituintes de 1988 que deram estabilidade aos sem-concurso que estavam há mais de cinco anos no cargo. Foram excluídos, portanto, os servidores contratados entre 1983 e 1988.
O justo, à época, quem sabe teria sido dar-lhes a oportunidade de demonstrar em concurso as suas aptidões para os cargos ocupados, com o afastamento dos que ficassem aquém do padrão. À falta disso, instituiu-se a situação típica de dois pesos e duas medidas que o projeto veio para sanar. De quebra, estendia a estabilidade aos empregados das estatais contratados até 1991, quando se firmou a exigência de concurso para admissão também nas empresas da área pública. Estava a proposta nesse pé quando, há dois meses, o deputado tucano Zenaldo Coutinho, do Pará, propôs ampliar a estabilidade aos contratados a título temporário não apenas pela União, mas também pelos Estados e municípios há pelo menos 10 anos (a contar da data da promulgação do projeto).
O Brasil dos servidores temporários no mínimo há um decênio é o mesmo do Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras, cobrado desde janeiro de 1994 e rebatizado de Contribuição – sempre temporária – em novembro de 1996. As estimativas sobre o total de provisórios variam, mas há quem mencione 230 mil, dos quais algo como 120 mil só em São Paulo. Fazer o quê com eles? Se forem demitidos, argumenta Coutinho, não terão direito à indenização, embora recolham para a Previdência. E a sua estabilização, a se concretizar, será de fato o trem da alegria de que falam os jornais? Decerto a expressão se ajusta melhor à segunda proposta anexada à Emenda nº 54. De autoria do pernambucano Gonzaga Patriota, do PSB, foi apresentada em fevereiro de 2003.
Ela permite que todo funcionário concursado para um cargo seja efetivado em outro, que exerça há pelo menos três anos, em qualquer órgão municipal, estadual ou federal que o tenha requisitado. Calcula-se que somem 20 mil servidores ou mais. Assim, o servidor de uma prefeitura interiorana que foi parar no Congresso, por requisição de um parente deputado ou senador – e não são poucos os apadrinhados -, terá o direito de engrossar os quadros ativos e inativos do Legislativo federal, com a paga e as prebendas que lhe seriam inacessíveis no emprego original.
Em conversas privadas, o deputado Arlindo Chinaglia teria se oposto aos dois textos apensados ao projeto de 1999. Mas dificilmente os seus pares resistirão às pressões combinadas dos não concursados, temporários e requisitados. A demanda destes últimos, os menos numerosos da trinca, é claramente indefensável. Configura um atalho para subir na vida funcional, vedado a legiões de outros funcionários. Como era de prever, a sua atuação nos bastidores deve ter pesado na decisão do colégio de líderes da Câmara, em abril de 2006, para que a Emenda nº 54 fosse incluída na agenda de votações.
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