A revista Veja desta semana (edição 2162, de 28/4/2010) publica um artigo sobre fotografia intitulado ‘Um nó no fio da memória’, no qual discute história e manipulação fotográfica. Neste artigo é afirmado categoricamente que estudos sugerem ser a cena apresentada na fotografia ‘Morte de um soldado legalista’, tirada por Robert Capa em 1936, uma montagem.
Nesses tempos em que o fascismo ressurge sob a forma de governos populistas que se dizem progressistas, mas sempre aliados à truculência da direita e apoiados por movimentos sociais chapa-branca, criminosos ambientais e corruptos, esta revista simplesmente repete as infâmias que o governo franquista já usava em 1936 para tentar desmoralizar os que lutavam e morriam pela democracia e liberdade.
Como acontecimentos históricos há aproximadamente dois anos atestam a autenticidade desta fotografia, a revista Veja comete uma agressão contra todos nós, em particular ao fotojornalismo, à história da fotografia e à cultura.
Em nome da verdade, que tal conhecermos um pouco da trajetória desta imagem de Robert Capa documentando tão trágica cena?
O tesouro perdido
O aparecimento de um conjunto de negativos dos fotógrafos Robert Capa, Gerda Taro e David Seymour, tirados em 1936, durante a Guerra Civil espanhola e desaparecidos desde a Segunda Guerra Mundial, atualiza não só a história da fotografia como as lutas pelos ideais democráticos e socialistas, tão desprezados em nossos dias. Tal como um romance de suspense e mistério, vidas, mortes, encontros e desencontros marcaram a longa viagem deste material durante quase 70 anos saindo da Europa, passando pelo México, para finalmente chegar, no final de 2007, ao Centro Internacional de Fotografia de Nova York, fundado por Cornell, irmão do fotógrafo Robert Capa. Até então eram conhecidas 500 imagens de Capa e agora se somaram a este acervo mais de 3.000 fotogramas, encontrados nos 127 rolos de filmes, que estavam acondicionados nas três caixas outrora desaparecidas.
Em 1934, o fotógrafo húngaro Andrei Friedmann, juntamente com a sua namorada, a também fotógrafa e produtora Gerda Taro – na realidade, uma alemã cujo nome real era Gerta Pohorylle – criaram um personagem mítico, que seria um famoso fotógrafo americano e se chamaria Robert Capa. Com isto, pensavam vender mais facilmente as suas reportagens fotográficas, só não imaginando, na época, que o personagem criado se tornaria tão real, deixando um profundo registro na cobertura jornalística de conflitos armados.
Em 1936, Capa e Gerda partem para a Espanha, fotografando cenas de combate em plena Guerra Civil, onde Gerda Taro encontra a morte no ano seguinte, durante o seu trabalho.
Morto, com a câmera nas mãos
Uma das fotografias mais marcantes deste período foi feita em uma colina perto de Córdoba, em 1936, onde é captada uma cena que mostra os horrores da guerra, com a imagem de um guerrilheiro republicano no instante em que é ferido mortalmente. Esta foto correu o mundo, recebendo o título de ‘Morte de um soldado legalista’, sendo um instantâneo tirado em um intervalo de tempo muito particular, no que poderíamos chamar de fronteira entre a vida e a morte.
Esta fotografia foi publicada, pela primeira vez, na revista francesa Vu, tendo motivado muitos jovens pelo mundo afora a se alistarem nas famosas Brigadas Internacionais, que partiam para a Espanha em uma luta mortal contra a ditadura franquista, apoiada pelos nazistas da Alemanha. Daqui do Brasil e Argentina saíram muitos voluntários e vários descendentes de italianos integraram as famosas brigate Garibaldi, que infligiram sérias derrotas aos fascistas, em março de 1937, na cidade de Guadalajara. A luta destes heróis da liberdade foi imortalizada na literatura por peças de teatro como Os Fuzis da Senhora Carrar, de Bertolt Brecht, e o fabuloso romance Por Quem os Sinos Dobram, de Ernest Hemingway, cujo título foi inspirado em um poema de John Donne, que reproduzimos em parte abaixo:
‘…a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti’.
Alguns meses depois da trágica morte de Gerda, no auge dos seus 27 anos de idade, Capa mostrava os horrores da invasão japonesa na China. Após a invasão da França em 1940, trabalhou nos Estados Unidos, Inglaterra e Argélia, retornando a Europa com a invasão da Normandia. Em 1947 muda-se para os Estados Unidos onde, com Cartier-Bresson e outros fotógrafos, funda a agência Magnum Photos. Em 1954, Robert Capa morre na Indochina ao pisar em uma mina, sempre fiel a sua máxima: ‘Se as fotografias não são suficientemente boas, é porque não se está suficientemente perto.’
Seu corpo foi encontrado com as pernas dilaceradas, mas com a câmera firmemente protegida nas mãos, como fazia em inúmeras situações anteriores, em que sobreviveu nos seus 41 anos de vida.
Senso mágico de verdade e justiça
Enquanto Capa viajava por diferentes países cobrindo conflitos armados, os seus negativos, tirados durante a Guerra Civil espanhola, atravessavam continentes e oceanos. Em 1939, ou 1940, o fotógrafo húngaro Imre Weisz pegou as caixas contendo estes históricos negativos, em Paris, e partiu para Marselha, quando foi preso e enviado para um campo de concentração. Mas, felizmente, em algum ponto desta viagem, os negativos acabaram nas mãos de um ex-general de Pancho Villa que pertencia ao corpo diplomático mexicano na França. Tanto o general quanto Weisz, foram posteriormente para o México, mas nunca se encontraram e os negativos foram considerados irremediavelmente perdidos.
Felizmente contatos recentes com a família do general mexicano, permitiram que todo este material esteja hoje nas mãos de historiadores e peritos em fotografia. Isto é importante, pois os fascistas espalhavam boatos de que a foto ‘Morte de um soldado legalista’ poderia ser uma montagem, como peça publicitária para a causa republicana. Esta suspeita era incômoda, pois o negativo da foto jamais fora encontrado. Hoje, neste ‘tesouro’, temos não só uma seqüência completa de negativos referentes a esta imagem, como de várias personalidades da época. Este material permitirá também aos pesquisadores conhecerem um pouco mais da carreira de Taro, que foi uma das primeiras mulheres fotógrafas de guerra e certamente muitas das imagens atribuídas genericamente a Capa, foram tiradas por ela.
Estes acontecimentos, além de nos transportar para um mundo de aventuras e ideais, mostram que apesar de muitos tentarem criar falsas verdades em diferentes países, com poderosas organizações, como DIP, Stasi ou a chamada ‘imprensa chapa-branca’ (ver, por exemplo, ‘Banido por mau comportamento‘), a história parece que tem um senso mágico de verdade e justiça que prevalece, nem que leve décadas.
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Físico e escritor, Rio de Janeiro, RJ